A origem do estetoscópio e o exame físico no século XXI: uma arte em segundo plano?

Um editorial do Brazilian Journal of Cardiovascular Surgery, publicado recentemente, relembra o aniversário de 200 anos da invenção do estetoscópio por Laënnec, celebrado em 2016 [1]. Imagine como era exercer a medicina há dois séculos, sem dispor de todo o aparato tecnológico e o fácil acesso à literatura médica como existe hoje. O poder de observação era imprescindível, e foi assim que Laënnec inventou o estetoscópio, termo derivado do grego stethos (tórax) e skopein (ver) [2]. Já naquela época, foi esse mesmo médico quem primeiro descreveu os sinais semiológicos obtidos a partir da ausculta, como roncos, crepitações, atrito pleural ou pectorilóquia [3]. A propósito, foi ele também quem deu o nome de “ausculta” a essa técnica, a partir do grego auscultare (escutar) [2].

Laënnec utilizando seu novo instrumento para ausculta [2].

A história de como René Théophile Hyacinthe Laënnec (1781-1826) inventou o estetoscópio é no mínimo curiosa. Existem algumas versões, relatadas por diferentes pesquisadores, baseadas nos relatos do médico inventor ou nos de médicos contemporâneos a ele. A versão mais difundida é a de que, ao precisar examinar uma jovem moça, a fim de evitar o constrangimento de encostar a cabeça no tórax da paciente, Laënnec enrolou um jornal em forma de tubo, encostou uma ponta na pele da jovem e seu ouvido na outra extremidade, ficando surpreso com a nitidez com que conseguiu ouvir os batimentos cardíacos [2].

Estetoscópio original de Laënnec, feito de papel [2].

Outras versões afirmam que a paciente em questão era obesa. Ao falhar em escutar seu tórax como era de costume, em razão da espessa camada de gordura, optou por confeccionar um tubo de papel para cumprir este fim, obtendo o conhecido sucesso. Outro relato atesta que o médico utilizou o novo instrumento para evitar se aproximar tanto do paciente, para não contrair tuberculose pulmonar. Esta última versão é menos validada, pois o próprio Laënnec faleceu ainda jovem por complicações dessa doença [2].

Mas o curioso mesmo é a origem da ideia de utilizar um tubo para fazer o exame. Relatos mostram que, quando estava a caminho para atender uma paciente, Laënnec observou alguns jovens brincando de falar na uma extremidade de uma viga de madeira enquanto os outros escutavam do outro lado. Assim, ele resolveu experimentar se o mesmo princípio de propagação do som também valeria para a medicina [2].

Estetoscópio feito de madeira após o original de papel [2].

Atualmente, vive-se um grande avanço tecnológico na área médica, em que os exames de imagem estão cada vez mais sofisticados e precisos. Observa-se que, na educação médica, esses exames ganham cada vez mais espaço, enquanto os alunos perdem um pouco da curiosidade pela semiologia médica e relevam a realização de um exame físico minucioso. Na cardiologia, opta-se por solicitar um ecocardiograma ou eletrocardiograma em detrimento de uma boa ausculta cardíaca. Será este o caminho certo a seguir?

Não faltam exemplos que mostram a importância do exame físico em relação a exames complementares. Há depoimentos publicados nos quais o médico relata a chegada de um paciente com dor torácica e um eletrocardiograma evidenciando uma alteração compatível com infarto agudo do miocárdio. Este mesmo paciente, ao ter sua pressão arterial aferida, tem o diagnóstico de dissecção aguda de aorta, após a constatação de resultados divergentes em diferentes membros [4]. Estudos realizados com tripulantes de um navio expostos ao asbesto, substância conhecida por causar uma importante doença respiratória relacionada ao trabalho, mostraram que era possível detectar crepitações na ausculta com a mesma eficácia de tomografias computadorizadas nesses pacientes [5].

Estudos concluem que sons advindos da ausculta cardiopulmonar realizada por profissionais treinados têm valor clínico assim como qualquer outro exame [5]! Ao solicitar um exame de imagem, é sempre importante descrever os achados semiológicos do paciente; por exemplo, descrever um sopro cardíaco quando solicitar o ecocardiograma, para aumentar a eficácia do exame e contribuir para o trabalho do outro profissional [1].

Os exames complementares, úteis na elucidação diagnóstica, têm a vantagem de documentar resultados que podem ser utilizados em possíveis ações judiciais. O exame físico tem a vantagem de ser barato em relação aos exames mais sofisticados, além de poder ser realizado em qualquer lugar. Também é útil para avaliações seriadas do paciente e, ao envolver o toque, promove uma melhor relação médico-paciente [4]. Portanto, o exame físico continua sendo a base da investigação médica moderna, podendo ser complementado por exames de imagem que felizmente contribuem muito para a elucidação diagnóstica do paciente.

Referências

1. Evora PRB, Schmidt A, Braile DM. Even considering the existing high technology, do not forget that the old stethoscope is still a useful tool for the heart team. Braz J Cardiovasc Surg. 2018;33(3):I-II.

2. Cheng TO. How Laënnec invented the stethoscope. Int J Cardiol. 2007;118:281-5.

3. Harbison J. ‘The old guessing tube’: 200 years of the stethoscope. QJM. 2017;110(1):9-10.

4. Jauhar S. The demise of the physical exam. N Engl J Med. 2006;354(6):548-51.

5. Murphy RL. In defense of the stethoscope. Respir Care. 2008;53(3):355-69.

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