Como as diferenças entre os sexos afetam os resultados das cirurgias cardiovasculares?

As doenças cardiovasculares permanecem na liderança de mortalidade em nível mundial, estimando-se que, até 2030, mais de 23 milhões de pessoas morram a cada ano em decorrência dessas patologias, o que as tornam um problema de saúde pública.1 Múltiplos fatores influenciam na epidemiologia das cardiopatias; dentre eles, o sexo biológico confere variabilidade, com diferenças não apenas na incidência, mas também nos índices de sucesso cirúrgico, reospitalização pós-operatória e, inclusive, na mortalidade. 

Bechtel e Huffmyer descreveram uma série de particularidades biológicas ao comparar o status pré-operatório de homens e mulheres submetidos a cirurgias cardíacas. Tais diferenças, descritas na Tabela 1, são de extrema importância na avaliação dos resultados cirúrgicos.2

Tabela 1. Diferenças de gênero em pacientes serão submetidos a cirurgia cardíaca

Categoria MulherHomem
Fatores biológicos
Idade Maior expectativa de vida, manifestação tardia de DAC

Se apresentação precoce de IAM/DAC, pior prognóstico e elevada mortalidade
Apresenta DAC mais cedo
Biologia vascular Artérias coronárias menores, ADA e coronária esquerda menores em 10-15% dos casos, maior trombogenicidade Artérias coronárias com maior dimensão
Localização da DAC ADA mais comum ADA mais comum

Em caso de doença multiarterial, envolvimento difuso, porém grande número de colaterais
Biologia dos esteroides A exposição ao estrogênio atrasa a aterosclerose, contribuindo para um desenvolvimento tardio de DAC e melhor resposta para lesão vascular a longo prazo O envelhecimento e a menor produção de androgênios/testosterona contribuem para um maior risco de DAC e aumento da inflamação
Padrão de apresentação
angiográfica
DAC menos obstrutiva; sintomas mais associados a espasmo da artéria coronária, ruptura/erosão de placa aterosclerótica; doença microvascular DAC obstrutiva e macrovascular
Fatores de risco determinados
pelo gênero
Cirurgia de urgência com necessidade de suporte com BIA
IC congestiva coexistente 
Menor classificação da NYHA
Diabetes mellitus; DPOC
Doença vascular periférica
Menor área de superfície corporal
Angina instável
Menor hematócrito pré-operatório
Menor fração de ejeção do ventrículo esquerdo

DAC multiarterial; maior índice de reoperação

Falência renal/DRC
Histórico de tabagismo
IAM prévio

ADA: artéria descendente anterior; BIA: balão intra-aórtico; DAC: doença arterial coronariana; DRC: doença renal crônica; IAM: infarto agudo do miocárdio; IC: insuficiência cardíaca; NYHA: New York Heart Association.Fonte: adaptada de Bechtel e Huffmyer, 2020.2

Tendo em vista a relevância das diferenças entre os sexos feminino e masculino nos resultados a longo prazo de uma cirurgia cardiovascular, destaca-se a presença dessa variável na composição dos principais escores de risco disponíveis atualmente, o EuroSCORE II e o STS Short-term/Operative Risk Calculator, elaborados a partir de bancos de dados europeus e estadunidenses, respectivamente.3,4 Desse modo, é válido compreender as particularidades de cada sexo ao avaliar as principais cirurgias cardíacas.

Cirurgia de revascularização miocárdica 

Atualmente, o sexo feminino representa cerca de 30% dos casos de cirurgia de resvacularização miocárdica (CRM). Fatores como achados angiográficos mais inespecíficos, caráter não obstrutivo da doença arterial coronariana (DAC), atraso no diagnóstico da DAC, maior número de comorbidades e maior índice de tratamento conservador são algumas das diferenças que explicam um menor número de CRMs no sexo feminino quando comparado ao masculino. Observa-se também que mulheres apresentam maior número de óbitos após CRM, tanto no pós-operatório imediato quanto em longo prazo.5 

Figura 1. Cirurgia de revascularização miocárdica.

Correção cirúrgica de aneurismas e dissecções da aorta

Comparativamente, observa-se que o sexo feminino apresenta o triplo do risco de dissecção ou ruptura aneurismática em aorta torácica e até 40% mais óbitos do que o masculino. Ao considerar os aneurismas de aorta abdominal, observa-se um maior índice de ruptura, bem como velocidade de crescimento, no sexo feminino em comparação ao masculino.6

Em geral, mulheres apresentam pior prognóstico em casos de aneurisma e dissecção da aorta, o que se associa a idade mais avançada, maior número de comorbidades associadas e retardo no diagnóstico, bem como menor índice de abordagem cirúrgica.7 Ainda não estão totalmente claros na literatura os fatores que levam às divergências de prognóstico ao comparar homens e mulheres que sofreram aneurisma ou dissecção aórtica. Contudo, fatores como degeneração da matriz extracelular, enrijecimento dos vasos e hipertensão arterial, comumente identificados em idosas, são algumas das causas atribuíveis às diferenças pré-operatórias com influência prognóstica entre os sexos.8 

Figura 2. Reparo cirúrgico de dissecção aórtica.

Cirurgias de troca valvar 

Valva aórtica

No sexo feminino, a suscetibilidade para o desenvolvimento da estenose aórtica (EAo) é diretamente proporcional à idade.9 Comparativamente aos homens, observa-se que, de acordo com a menor área de superfície corporal, o anel valvar aórtico em mulheres apresenta menor dimensão. Além disso, a fisiopatologia da EAo em mulheres se associa a um maior grau de fibrose e a menor deposição de cálcio.10 EAo grave no sexo feminino se associa a uma sintomatologia mais intensa, porém a um menor índice de referenciamento para intervenção, conferindo maior mortalidade.11 

Um estudo comparando a mortalidade entre os sexos na troca de valva aórtica, identificou o sexo feminino como fator de risco independente para óbito a longo prazo, bem como sua associação a uma menor expectativa de vida após o procedimento.12 Ademais, pelo menor diâmetro do anel valvar, o índice de mismatch da prótese é superior no sexo feminino.9Ao considerar o implante de válvula aórtica transcateter (TAVI), a correção percutânea da EAo, estudos indicam que não há diferenças estatisticamente significativas ao considerar a mortalidade em 30 dias, acidente vascular cerebral ou infarto agudo do miocárdio entre os sexos.13 Apesar disso, a literatura indica maior morbidade para mulheres, pelo maior risco de sangramentos maiores. Em contrapartida, o sexo feminino apresenta menor índice de óbitos durante o primeiro ano após o procedimento quando comparado ao masculino, o que se associa a menor prevalência de insuficiência aórtica e morte cardíaca entre mulheres.14

Figura 3. Ilustração de uma TAVI.

O número de casos da insuficiência aórtica (IAo), de forma semelhante à EAo, eleva-se com o envelhecimento, atingindo cerca de 2% dos indivíduos sexagenários. Epidemiologicamente, essa valvopatia é mais prevalente no sexo masculino, o que se explica pelo maior número de valvas aórticas bicúspides, bem como maior suscetibilidade à endocardite entre os homens.15 Quanto ao prognóstico, o sexo feminino apresenta maior mortalidade após correção cirúrgica de IAo.16

Valva mitral

Fatores como uma menor área de superfície corpórea, volume ventricular esquerdo reduzido e maior risco de mismatch da prótese, observados em mulheres, influenciam no prognóstico pós-cirúrgico diferencial ao serem comparados ao sexo masculino.17 Um estudo sobre infarto do miocárdio de etiologia isquêmica descreveu o sexo feminino como fator de risco para desfechos desfavoráveis quando submetidas a cirurgia de troca valvar mitral, estando associado a uma maior mortalidade, além de pior qualidade de vida nos primeiros dois anos após o procedimento.18

Figura 4. Cirurgia de troca valvar mitral. 

Por sua vez, ao considerar a intervenção transcateter para correção da IM, Kosmidou et al., ao analisarem o ensaio clínico COAPT, relataram um perfil feminino mais jovem e com menos comorbidades, porém apresentaram pior qualidade de vida após o procedimento e um maior índice de hospitalização por descompensação de insuficiência cardíaca no ano seguinte à intervenção, quando comparadas aos homens.19

Valva tricúspide 

Existem variações anatômicas entre homens e mulheres que influenciam na apresentação dessa valvopatia entre os sexos. Um estudo que incluiu pacientes submetidos à correção isolada de valva tricúspide identificou um índice de morbidade e mortalidade semelhante entre os sexos após o procedimento.20

Figura 5. Reparo cirúrgico da valva tricúspide.

Valva pulmonar 

A literatura carece de trabalhos destinados a avaliar as diferenças entre os sexos após correção de valvopatia pulmonar, em que a principal técnica empregada diz respeito à intervenção percutânea por cateter-balão. Um dos poucos estudos com esse fim não identificou diferenças no prognóstico entre os sexos feminino e masculino após o procedimento, o qual esteve associado a um bom resultado a longo prazo, com baixo índice de reabordagem.21

Transplante cardíaco

O sexo masculino representa cerca de 75% dos pacientes transplantados, enquanto mulheres apresentam menor expressividade: 25% dos casos.22 Ainda não há consenso na literatura acerca da influência do sexo biológico no prognóstico após transplante cardíaco. Um estudo recente não identificou correlação entre sexo e mortalidade após o transplante.23 

Por outro lado, observa-se maiores morbidade e mortalidade em casos de incompatibilidade de sexo entre doador e receptor, destacando-se os casos de doador feminino com receptor masculino, em que se observam maiores índices de rejeição, vasculopatia de aloenxerto e insuficiência renal, representando, portanto, um preditor de mortalidade no primeiro ano após o transplante.24

Figura 7. Transplante cardíaco.

REFERÊNCIAS

1 Benjamin EJ, Blaha MJ, Chiuve SE, Cushman M, Das SR, Deo R, et al.; American Heart Association Statistics Committee and Stroke Statistics Subcommittee. Heart Disease and Stroke Statistics-2017 Update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2017;135:e146-e603.
2 Bechtel AJ, Huffmyer JL. Gender differences in postoperative outcomes after cardiac surgery. Anesthesiology Clin. 2020;38:403-15.
3 The Society of Thoracic Surgeons. ACSD Operative Risk Calculator. Disponível em: https://www.sts.org/resources/acsd-operative-risk-calculator. Acesso em 20 jun. 2024.
4 EuroSCORE II calculator. Disponível em: https://www.euroscore.org/index.php?id=17&lang=en. Acesso em 20 jun. 2024.
5Mahowald MK, Alqahtani F, Alkhouli M. Comparison of outcomes of coronary revascularization for acute myocardial infarction in men versus women. Am J Cardiol. 2020;132:1-7.
6Cheung K, Boodhwani M, Chan KL, Beauchesne L, Dick A, Coutinho T. Thoracic aortic aneurysm growth: role of sex and aneurysm etiology. J Am Heart Assoc. 2017;6(2):e003792.
7Crousillat D, Briller J, Aggarwal N, Cho L, Coutinho T, Harrington C, et al. Sex differences in thoracic aortic disease and dissection: JACC review topic of the week. J Am Coll Cardiol. 2023;82(9):817-27.
8Boczar KE, Cheung K, Boodhwani M, Beauchesne L, Dennie C, Nagpal S, et al. Sex differences in thoracic aortic aneurysm growth. Hypertension. 2019;73:190-6.
9DesJardin JT, Chikwe J, Hahn RT, Hung JW, Delling FN. Sex differences and similarities in valvular heart disease. Circ Res. 2022;130(4):455-73.
10 Simard L, Côté N, Dagenais F, Mathieu P, Couture C, Trahan S, et al. Sex-related discordance between aortic valve calcification and hemodynamic severity of aortic stenosis: is valvular fibrosis the explanation? Circ Res. 2017;120:681-91.
11 Chaker Z, Badhwar V, Alqahtani F, Aljohani S, Zack CJ, Holmes DR, et al. Sex differences in the utilization and outcomes of surgical aortic valve replacement for severe aortic stenosis. J Am Heart Assoc. 2017;6:e006370.
12 Hernandez-Vaquero D, Rodriguez-Caulo E, Vigil-Escalera C, Blanco-Herrera O, Berastegui E, Arias-Dachary J, et al. Differences in life expectancy between men and women after aortic valve replacement. E J Cardiothorac Surg. 2021;60(3):681-8.
13 Vlastra W, Chandrasekhar J, García Del Blanco B, Tchétché D, de Brito FS Jr, Barbanti M, et al. Sex differences in transfemoral transcatheter aortic valve replacement. J Am Coll Cardiol. 2019;74:2758-67.
14 Saad M, Nairooz R, Pothineni NVK, Almomani A, Kovelamudi S, Sardar P, et al. Long-term outcomes with transcatheter aortic valve replacement in women compared with men. JACC Cardiovasc Interv. 2018;11(1):24-35.
15 d’Arcy JL, Coffey S, Loudon MA, Kennedy A, Pearson-Stuttard J, Birks J, et al. Large-scale community echocardiographic screening reveals a major burden of undiagnosed valvular heart disease in older people: the OxVALVE Population Cohort Study. Eur Heart J. 2016;37:3515-22.
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21 Ananthakrishna A, Balasubramonium VR, Thazhath HK, Saktheeshwaran M, Selvaraj R, Satheesh S, Jayaraman B. Balloon pulmonary valvuloplasty in adults: immediate and long-term outcomes. J Heart Valve Dis. 2014;23:511-5.
22 DeFilippis EM, Nikolova A, Holzhauser L, Khush KK. Understanding and investigating sex-based differences in heart transplantation: a call to action. JACC Heart Fail. 2023;11(9):1181-8.
22 Kondziella C, Fluschnik N, Weimann J, Schrage B, Becher PM, Memenga F, et al. Sex differences in clinical characteristics and outcomes in patients undergoing heart transplantation. ESC Heart Fail. 2023;10(4):2596-606.
24 Foroutan F, Alba AC, Guyatt G, Duero Posada J, Ng Fat Hing N, Arseneau E, et al. Predictors of 1-year mortality in heart transplant recipients: a systematic review and meta-analysis. Heart. 2018;104(2):151-60.

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