Passar por um grande procedimento como a cirurgia cardíaca certamente gera preocupação mesmo para o paciente mais orientado, sendo operado pelo melhor cirurgião, na melhor instituição possível. Grande parte do medo pode ser atribuída ao conhecido risco de complicações que se associam ao procedimento, geralmente manifestadas nos primeiros 30 dias do procedimento, momento a partir do qual os benefícios da cirurgia cardíaca preponderam e são inegáveis.
Visando reduzir complicações e trazer o melhor tratamento possível, cirurgiões e gestores podem se aproximar dos conceitos de Qualidade em Saúde. No contexto da cirurgia cardiovascular, o desfecho se relaciona íntima e indissociavelmente à sobrevivência dos pacientes. Afinal, os principais indicadores e escores de risco que utilizamos, como o europeu (EuroSCORE) e o norte-americano (STS), têm como principal desfecho a mortalidade operatória. Portanto, buscar melhorar a qualidade na cirurgia cardíaca significa diretamente salvar mais vidas, melhorando a estrutura e os processos.
Historicamente, Avedis Donabedian descreveu uma estrutura e alguns pilares que podem ser utilizados para medir a qualidade do serviço que estamos ofertando aos pacientes, o que pode nos guiar para melhorar os resultados. Em 1966, Donabedian propôs uma tríade para a avaliação dos serviços de saúde[1]:
- Estrutura: adequação da infraestrutura física e de equipamentos, qualificação dos profissionais, acreditação dos hospitais, estrutura e operações administrativas dos programas e das instituições que fornecem cuidado.
- Processo: adequação, completude e redundância das informações coletadas por anamnese, exame físico e exames complementares; justificativa para o diagnóstico e tratamento; competência técnica na realização dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, incluindo a cirurgia; evidências de manejo preventivo na saúde e nas doenças; coordenação e continuidade do cuidado; aceitação do cuidado pelo paciente.
- Desfecho: recuperação do paciente, restauração de sua função e sobrevivência.
Na busca por melhorar os resultados em cirurgia cardiovascular, podemos nos deparar com múltiplas estratégias dentro de um programa de qualidade. Os sete pilares propostos por Donabedian foram bem reunidos em na publicação de Murad[2], que argumenta que um procedimento cirúrgico cardíaco “de qualidade” deve apresentar:
- Segurança: ser realizado de maneira correta, sem aumentar o risco de complicações.
- Eficiência: alcançar o objetivo do tratamento, seguindo os princípios baseados nas evidências atuais.
- Eficácia: custo-efetividade, i.e., reduzindo custos e riscos desnecessários.
- Igualdade: ofertado a todos os pacientes independentemente de idade, gênero, raça, sistema de saúde (público ou privado) ou situação socioeconômica.
- Tempo: ofertado no tempo apropriado, sem atrasá-lo desnecessariamente.
- Direcionado ao paciente: avaliação de benefício e risco para aquele paciente individualmente.

Se o que se deseja é melhorar os resultados, eles devem ser conhecidos inicialmente. Por isso, recomenda-se que cada cirurgião ou serviço componha sua base de dados, analisando o perfil dos pacientes que opera, como os procedimentos são realizados e contabilize mortalidade e os outros desfechos mais comuns (p. ex., AVC, infarto perioperatório, infecção de ferida, tempo de permanência em UTI, reoperação).
No artigo supracitado, Murad sugere ainda que os cirurgiões mais jovens adquiram o hábito de coletar seus dados desde o início da formação, para que componham sua experiência de forma sólida, genuína e baseada em evidências, o que permite corrigir erros, reduzir custos e melhorar o resultado cirúrgico[2].
Em outros países, a cultura de transparência dos dados já é uma realidade e, em muitos hospitais, o paciente tem acesso público à expectativa dos resultados que ele pode obter ao ser operado por determinado cirurgião em um dado hospital. Isso também é monitorado e respaldado por fóruns nacionais de qualidade e programas nacionais de melhora da qualidade.
No Reino Unido, a Sociedade Britânica de Cirurgia Cardiotorácica (SCTS na sigla em inglês) não publica mais os resultados específicos de cada cirurgião, mas do hospital como um todo. Como exemplo, ao acessar a sessão de dados de desfechos da SCTS e selecionar o Royal Brompton Hospital, podemos encontrar o seguinte gráfico:

No gráfico (Figura 2), podemos observar que foram realizadas 2.844 cirurgias e 100% dos dados são conhecidos. A sobrevida geral no Reino Unido é mostrada pela linha tracejada vertical (aproximadamente 98%), enquanto o quadrado vazado mostra a sobrevida observada no hospital em específico. O ponto preto mostra a sobrevida esperada com base em um modelo de regressão própria e o X que se encontra discretamente entre o quadrado e o ponto mostra a sobrevida predita pelos escores de risco.
Dessa forma, um paciente pode esperar que, se for operado no hospital em questão, sua chance de sobreviver à cirurgia será ligeiramente maior que a média do Reino Unido e maior que o esperado pelos escores de risco. Além disso, a rigor, estatisticamente poderíamos observar a barra horizontal, que denota o intervalo de confiança estimado do risco ao qual o paciente estaria submetido e ver que o quadrado está englobado por ela. Em termos práticos, isso implica que o resultado do hospital está dentro do esperado, nem muito melhor (acima de 3 desvios-padrão da sobrevida) nem muito pior (abaixo 3 desvios-padrão).
Esse foi um exemplo de como, a partir dos dados obtidos, é possível compará-los visando encontrar hospitais deficitários e passíveis de melhoria ou hospitais excelentes a servirem de exemplo: o benchmarking. Este pode ser realizado comparando resultados internos do hospital (benchmarking interno) ou comparando resultados da instituição investigada a outras instituições de setor de atuação semelhante ou diferente (benchmarking externo).
Benchmarking interno
Como exemplo dessa estratégia, foi realizado, no Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor HCFMUSP), um amplo levantamento de dados de resultado cirúrgico de 1984 a 2019, incluindo mais de 100.000 procedimentos[3]. Dentro do levantamento, os números foram separados por grupo cirúrgico, que possuía rotinas próprias.
Assim, se analisarmos um grupo cirúrgico que possua melhores resultados dentro de uma mesma instituição, podemos buscar as estratégias-chave que podem gerar efeitos de melhoria incremental do resultado de mortalidade ou mesmo para resultados específicos, a depender do grau de granulação/detalhamento dos dados que forem coletados.
No exemplo em específico, a análise de resultados associada ao conhecimento dos princípios de qualidade e segurança estimulou o desenvolvimento de um protocolo de melhoria contínua que foi associado a uma redução de mortalidade em cirurgias de revascularização do miocárdio, valvares e de cardiopatias congênitas.
Em uma análise normalizada por escore de propensão — método para ajustar diferenças reduzindo o viés dos estudos retrospectivos — de 3.544 cirurgias de revascularização, valvares, combinadas ou de aorta, foi ainda observado que o estabelecimento desse programa de qualidade foi capaz de reduzir tempo de internação, incidência de anemia, do uso de balão intra-aórtico, da fibrilação atrial, da injúria renal aguda, do choque cardiogênico e da sepse e a mortalidade intra-hospitalar. Na comparação de proporções, a ausência de um programa de qualidade estava associada a um aumento de 2,09 vezes na chance de mortalidade intra-hospitalar[4].
Benchmarking externo
Nesta estratégia, pode-se comparar a organização aos seus “concorrentes”, que, no caso de um serviço de cirurgia cardiovascular, pode ser feito de forma a ajustar seus resultados esperados por meio dos escores de risco, como STS[5], EuroSCORE II[6], GERAADA[7] ou RACHS-2[8]. Estes permitem ajustar os resultados de mortalidade e morbidade esperados para uma ampla gama de procedimentos. Desse modo, é possível entender se cada um dos desfechos observados nos pacientes operados pelo cirurgião ou instituição se encontra abaixo, dentro ou acima do esperado e buscar pontos de melhoria.
Contudo, vale ressaltar que a imensa maioria dos dados imputados para o desenvolvimento dos modelos de predição do escore acima descritos são de outros países, não havendo uma parcela significativa da população brasileira e suas particularidades (p. ex., maior prevalência de doença valvar reumática). Para ultrapassar essa barreira e ser ainda mais preciso na predição de resultados, seria necessário: 1) validar os escores existentes; ou 2) criar um escore próprio no Brasil ou até na própria instituição de estudo.
No intuito de validar escores internacionais na instituição, um exemplo realizado pelo InCor em 2012 foi a análise dos escores Bernstein-Parsonnet (2000BP) e EuroSCORE em pacientes submetidos a revascularização do miocárdio ou cirurgia valvar. Foi percebido que o EuroSCORE mostrava boa calibração, enquanto o 2000BP se mostrou inadequado[9]. Com isso, espera-se que utilizar o EuroSCORE como comparação seja mais adequado na avaliação de resultados na instituição em específico.
Utilizando o Registro Paulista de Cirurgia Cardiovascular (REPLICCAR), um grupo de 11 hospitais uniu seus dados perioperatórios, calculando STS e EuroSCORE II de cada paciente, e estimou um novo modelo de predição de risco, chamado SPScore. Este foi capaz de predizer, com melhor acurácia que o STS e o EuroSCORE II, os riscos de mortalidade (AUC-ROC 0,90 vs. 0,76 vs. 0,77), reoperação, readmissão e complicações[10].
Esse resultado mostra que dados locais podem predizer e guiar com maior precisão a expectativa de desfechos dentro da realidade daquela região. Contudo, mesmo que a mortalidade da instituição esteja abaixo de um escore de risco regional, não significa que não haja espaço para melhora contínua ou para comparação aos escores internacionais. Atualmente, existem ainda esforços para o desenvolvimento de um escore de risco que incluiria diversos centros brasileiros, trazendo dados representativos de uma perspectiva nacional: o BraSCORE[11].
Dentro de um programa de qualidade em cirurgia cardíaca, analisar os dados e compará-los aos desfechos esperados é o primeiro passo para buscar a próxima intervenção visando à melhora dos resultados. Nesse contexto, com uma publicação transparente de dados da nossa realidade e uma análise adequada dos desfechos na cirurgia cardiovascular, pode-se dar substrato para avaliações e intervenções em todos os serviços do país. Isso é o benchmarking externo sendo utilizado para o fim comum de qualquer serviço ou ação em saúde: melhorar a assistência ao paciente, salvando cada vez mais vidas.
Referências
1Donabedian A. Evaluating the quality of medical care. 1966. Milbank Q. 2005;83(4):691-729. doi: 10.1111/j.1468-0009.2005.00397.x.
2Murad H, Murad FF. Quality control in cardiovascular surgery: a new paradigm. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2007;22(4):470-5. doi: 10.1590/s0102-76382007000400014.
3Mejia OAV, Lisboa LAF, Caneo LF, Arita ET, Brandão CMA, Dias RR, et al. Análise de > 100.000 cirurgias cardiovasculares realizadas no Instituto do Coração e a nova era com foco nos resultados. Arq Bras Cardiol. 2020;114(4):603-12. doi: 10.36660/abc.20190736.
4Mejia OAV, Borgomoni GB, Palma Dallan LR, Mioto BM, Duenhas Accorsi TA, Lima EG, et al. Quality improvement program in Latin America decreases mortality after cardiac surgery: a before-after intervention study. Int J Surg. 2022;106:106931. doi: 10.1016/j.ijsu.2022.106931.
5Shahian DM, Jacobs JP, Badhwar V, Kurlansky PA, Furnary AP, Cleveland JC, et al. The Society of Thoracic Surgeons 2018 adult cardiac surgery risk models: Part 1—Background, design considerations, and model development. Ann Thorac Surg. 2018;105:1411-8. doi: 10.1016/j.athoracsur.2018.03.002.
6Nashef SA, Roques F, Sharples LD, Nilsson J, Smith C, Goldstone AR, Lockowandt U. EuroSCORE II. Eur J Cardiothorac Surg. 2012;41:734-45. doi: 10.1093/ejcts/ezs043.
7Czerny M, Siepe M, Beyersdorf F, Feisst M, Gabel M, Pilz M, et al. Prediction of mortality rate in acute type A dissection: the German Registry for acute type A aortic dissection score. Eur J Cardiothorac Surg. 2020;58(4):700-6. doi: 10.1093/ejcts/ezaa156.
8Allen P, Zafar F, Mi J, Crook S, Woo J, Jayaram N, et al.; New York State CHS-COLOUR. Risk Stratification for Congenital Heart Surgery for ICD-10 Administrative Data (RACHS-2). J Am Coll Cardiol. 2022;79(5):465-78. doi: 10.1016/j.jacc.2021.11.036.
9Mejía OA, Lisboa LA, Dallan LA, Pomerantzeff PM, Moreira LF, Jatene FB, Stolf NA. Validation of the 2000 Bernstein-Parsonnet and EuroSCORE at the Heart Institute – USP. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2012;27(2):187-94. doi: 10.5935/1678-9741.20120033.
10Mejia OAV, Borgomoni GB, Zubelli JP, Dallan LRP, Pomerantzeff PMA, Oliveira MAP, et al.; REPLICCAR Study Group. Validation and quality measurements for STS, EuroSCORE II and a regional risk model in Brazilian patients. PLoS One. 2020;15(9):e0238737. doi: 10.1371/journal.pone.0238737.
11Mejía OAV, Lisboa LAF. O risco dos escores de risco e o sonho pelo BraSCORE. Braz J Cardiovasc Surg. 2012;27(2):xii-i. doi: 10.5935/1678-9741.20120032.