Na mitologia grega, Caríbdis e Cila eram monstros marinhos que representavam grandes perigos enfrentados pelos navegadores que ousavam desbravar o horizonte. Na Odisseia, Homero narra a história de Odisseu (Ulisses, na versão romana) retornando para sua terra após a Guerra de Troia. Em seu percurso, o herói depara com uma situação delicada: em um lado do estreito que atravessava estava Caríbdis, monstro das profundezas que sorvia e vomitava água constantemente, formando um redemoinho. Entretanto, Odisseu não podia evitar o redemoinho navegando pelo lado oposto, pois lá se encontrava Cila, monstro ameaçador de doze pernas e seis cabeças. Percebeu que não podia pender nem muito para um lado, nem para o outro.
Foi com essa analogia que Torrado et al. compararam a evolução da intervenção coronária percutânea (ICP) em seu artigo de revisão publicado neste ano. A analogia parece não fazer muito sentido, mas vamos já entender. A primeira ICP de que se tem relato ocorreu em 1977, quando o Dr. Andreas Grüntzig realizou uma angioplastia com balão, marcando o nascimento da cardiologia intervencionista. Apesar do sucesso do procedimento inovador, foram verificadas altas taxas de reestenose. Foram desenvolvidos, então, os stents metálicos, que conseguiram diminuir as taxas de reestenose e de revascularização miocárdica de emergência.
Contudo, logo perceberam que a ICP com stent metálico aumentava a chance de uma complicação catastrófica: a trombose de stent. Apresenta-se como um infarto do miocárdio com elevação do segmento ST no eletrocardiograma ou parada cardiorrespiratória súbita, necessitando de nova abordagem com urgência. Alguns anos se passaram e a redução das taxas de trombose precoce foram alcançadas por meio da melhora nas técnicas de PCI e do emprego da terapia antiplaquetária dupla (TAPD).
Observou-se que o lúmen arterial no interior do stent meses após a ICP reduzia-se significativamente, levando ao fenômeno conhecido como in-stent restenosis (ISR). Esta complicação leva a um quadro de angina persistente e necessidade de revascularização. Acredita-se que o principal mecanismo para essa redução do diâmetro do vaso seja a hiperplasia neointimal. Assim, foi criada a primeira geração de stents farmacológicos (1G-DES).
Os stents farmacológicos contribuíram reduzindo as taxas de ISR, entretanto, aumentavam a prevalência de trombose tardia (entre 30 dias e 1 ano da ICP) e muito tardia (acima de 1 ano) de stent. Esse novo perfil de complicação resultou no aumento da intensidade e duração da TAPD. Em consequência, foi observada maior taxa de eventos hemorrágicos.
Desenvolveu-se a segunda geração de stents farmacológicos, constituídos por polímeros biocompatíveis ou biodegradáveis e diferente farmacocinética na liberação da droga, reduzindo assim ISR, duração da TAPD e eventos hemorrágicos. Hoje, enfrenta-se o fenômeno da neoaterosclerose após ICP, bem como se estuda qual seria a duração ideal da TAPD e o emprego do dispositivo reabsorvível vascular (DRV), mas este ainda não apresentou o perfil de segurança adequado.
Assim como Odisseu, que se via diante de dois obstáculos em seu percurso, necessitando equilibrar seu navio para evitar ambos, a cardiologia intervencionista caminha evitando as complicações que aparecem durante sua evolução, sempre ponderando o risco de trombose e o risco da terapia antiplaquetária excessiva. Contribui de forma importante para o diagnóstico e o tratamento das cardiopatias, auxiliando a cirurgia cardiovascular a dar mais qualidade de vida para os pacientes.
Referência
Torrado J, Buckley L, Durán A, Trujillo P, Toldo S, Valle Raleigh J, et al. Restenosis, stent thrombosis, and bleeding complications: navigating between Scylla and Charybdis. J Am Coll Cardiol. 2018 Apr 17;71(15):1676-95. doi: 10.1016/j.jacc.2018.02.023.