Professor Enio Buffolo: um coração visionário da cirurgia brasileira

Nascido em 9 de dezembro de 1941, em São Paulo, Enio Buffolo escolheu seguir carreira na medicina após realizar um teste psicotécnico, que sugerira medicina ou história como opções de acordo com suas aptidões. Escolhendo a primeira, prestou vestibular para a Escola Paulista de Medicina (EPM), pela influência de seu tio, que era professor da disciplina de Neurologia e um grande exemplo de sucesso em sua família.

O tio havia sugerido que seguisse na neurocirurgia, mas foi buscando aprender mais sobre equilíbrio ácido-base que encontrou seu primeiro tutor na cirurgia cardiovascular: Dr. Hugo Felipozzi, cirurgião que contribuiu para o desenvolvimento da primeira máquina de circulação extracorpórea (CEC) brasileira.1 Dr. Felipozzi o apresentou ao professor Costabile Gallucci, que o apadrinhou em sua trajetória de desenvolvimento cirúrgico e acadêmico até se tornar professor titular da disciplina de Cirurgia Cardiovascular da EPM.

Uma de suas maiores contribuições foi o desenvolvimento de uma técnica que ainda hoje é amplamente discutida e estudada: a cirurgia de revascularização do miocárdio sem CEC.2 Nesta cirurgia, são feitas as pontes de artérias mamária, radial ou safena com o coração batendo, o que seria comparável a “trocar o pneu do carro com o carro andando”, como o Prof. Buffolo costumava dizer. Ele se utilizava desta comparação para provocar os cirurgiões que não acreditavam na técnica por crerem na maior dificuldade de garantir a qualidade da anastomose e uma revascularização completa.3

Contudo, temos dados que sugerem que a técnica permite evitar alguns danos relacionados à CEC, como redução do risco de acidente vascular cerebral (AVC) pela menor manipulação da aorta, redução da injúria do músculo do coração, diminuição da necessidade de transfusão sanguínea e aceleração da recuperação dos pacientes.4,5 Grande parte disso se deve ao empenho do Prof. Buffolo no desenvolvimento de técnicas para abordar as artérias coronárias da parede lateral e inferior do coração com reprodutibilidade e segurança, visto que anteriormente apenas se difundira o tratamento de lesões da artéria descendente anterior sem CEC e se acreditava que não se podia interromper momentaneamente o fluxo coronariano no momento da anastomose.6,7

Em 1996, seu artigo “Coronary artery bypass grafting without cardiopulmonary bypass”, publicado no Annals of Thoracic Surgery, tornou-se um dos trabalhos brasileiros de maior impacto internacional — o segundo mais citado na literatura mundial à época (atualmente com 564 citações contabilizadas pela Elsevier, 562 pelo Scopus e 459 pelo Web of Science).8 Durante o Congresso Mundial de Cirurgia Cardiotorácica, o Prof. Buffolo recebeu uma premiação pela relevância de seu trabalho: um tijolo com seu nome foi integrado a uma escultura de Hipócrates (considerado o Pai da Medicina) na ilha de Cós, na Grécia.

O Prof. Buffolo também foi grande apoiador do desenvolvimento da cirurgia endovascular de aorta e de uma prótese transcateter transapical e transfemoral para o tratamento da estenose aórtica, projetos capitaneados por um de seus principais discípulos: o Prof. José Honório Palma. Mesmo após décadas de conquistas, o Prof. Buffolo jamais perdeu o olhar de curiosidade científica. Entre suas áreas de estudo mais recentes estavam as terapias celulares em cardiologia, o tratamento cirúrgico da insuficiência cardíaca, novas tecnologias de assistência circulatória, regeneração miocárdica, e cirurgia translacional e híbrida.

No total, o Prof. Buffolo teve 320 artigos publicados em revistas indexadas, sendo 71 deles na Revista Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, hoje Brazilian Journal of Cardiovascular Surgery (BJCVS). Sua publicação com maior número de citações no BJCVS chama a atenção para algo tecnicamente simples, como o posicionamento do dreno pleural esquerdo em inserção subxifoide versus intercostal, mas que pode afetar bastante o conforto do paciente, a dor e sua recuperação no pós-operatório.9 Há outros artigos publicados na revista que valem a pena serem lidos para quem deseja conhecer mais sobre o trabalho do Prof. Buffolo, como:

  • O registro BYPASS, que trouxe dados da realidade nacional ao incluindo 2.292 pacientes submetidos à cirurgia de coronária.10
  • Dados sobre o desenvolvimento de uma prótese brasileira para o implante transcateter da valva aórtica (TAVI) por via transapical.11
  • Artigos sobre sua experiência com cirurgia de revascularização sem CEC.12

Em cargos administrativos, o Prof. Buffolo foi presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV), o primeiro presidente da Sociedade de Cirurgia Cardíaca do Estado de São Paulo (Scicvesp) e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). Além disso, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Cirurgia Cardiovascular. Em todas essas atividades, ele defendeu a integração entre ciência, ética e política de saúde.13

Além disso, sempre se preocupou em formar novos e competentes cirurgiões. Em uma de suas últimas entrevistas registradas, publicada pelo Projeto Memória da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina Memória (SPDM), orgulhou-se de como toda sua equipe era composta por cirurgiões que se dedicaram, tanto academicamente como na prática cirúrgica, até se tornarem professores. O mestre considerava, humildemente, que eles chegavam a superá-lo em conhecimento e em técnica.14 Sob suas mãos ou responsabilidade, sua equipe operou mais de 45 mil corações, mas, além disso, influenciou indiretamente centenas de milhares de operações no mundo.

Enio Buffolo faleceu em 6 de outubro de 2025, aos 83 anos, certamente deixando um grande legado e enorme impacto sobre diversos cirurgiões que tiveram o prazer de conhecê-lo em campo, nas visitas de enfermaria ou nos congressos. O BJCVS rende homenagem a este mestre maior, cuja trajetória honra a história da cirurgia cardíaca brasileira e inspira futuros cirurgiões que hoje seguem o caminho que ele pavimentou.

Referências


1 Barros L. Dr. Hugo Felipozzi: uma história de pioneirismo e dedicação à cirurgia cardiovascular [Internet. Blog do Brazilian Journal of Cardiovascular Surgery. 20 abr. 2017 [citado 29 out. 2025]. Disponível em: https://blog.bjcvs.org/single-post/2017/04/20/dr-hugo-felipozzi-uma-historia-de-pioneirismo-e-dedicacao-a-cirurgia-cardiovascular/.
2Buffolo E, Andrade JC, Succi JE, Leão LE, Cueva C, Branco JN, Gallucci C. Revascularização direta do miocárdio sem circulação extracorpórea. Descrição da técnica e resultados iniciais [Direct revascularization of the myocardium without extracorporeal circulation. Description of the technique and preliminary results]. Arq Bras Cardiol. 1982 May;38(5):365-73.
3Taggart D. Off-pump coronary artery bypass grafting (OPCABG): the beginning of the end? Glob Cardiol Sci Pract. 2013 Nov 1;2013(3):203-6. doi: 10.5339/gcsp.2013.27.
4Afilalo J, Rasti M, Ohayon SM, Shimony A, Eisenberg MJ. Off-pump vs. on-pump coronary artery bypass surgery: an updated meta-analysis and meta-regression of randomized trials. Eur Heart J. 2012;33(10):1257-67. doi: 10.1093/eurheartj/ehr307.
5 Puskas JD, Williams WH, Duke PG, Staples JR, Glas KE, Marshall JJ, et al. Off-pump coronary artery bypass grafting provides complete revascularization with reduced myocardial injury, transfusion requirements, and length of stay: a prospective randomized comparison of two hundred unselected patients undergoing off-pump versus conventional coronary artery bypass grafting. J Thorac Cardiovasc Surg. 2003 Apr;125(4):797-808. doi: 10.1067/mtc.2003.324.
6Buffolo E, Salerno TA, Lima RC. Off-pump myocardial revascularization — from the beginning till now. Braz J Cardiovasc Surg. 2025 Feb 12;40(1):e20240993. doi: 10.21470/1678-9741-2024-0993.
7 Kolessov VI. Mammary artery-coronary artery anastomosis as method of treatment for angina pectoris. J Thorac Cardiovasc Surg. 1967;54(4):535-44.
8Buffolo E, Andrade CS, Branco JN, Teles CA, Aguiar LF, Gomes WJ. Coronary artery bypass grafting without cardiopulmonary bypass. Ann Thorac Surg. 1996;61(1):63-6.
9Guizilini S, Gomes WJ, Faresin ACC, Jaramillo JI, Alves FA, Catani R, Buffolo E. Efeitos do local de inserção do dreno pleural na função pulmonar no pós-operatório de cirurgia de revascularização do miocárdio. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2004;19(1):47-54. doi: 10.1590/S0102-76382004000100010
10Paez RP, Hossne Junior NA, Santo JADE, Berwanger O, Santos RHN, Kalil RAK, et al.; BYPASS Registry Study Group. Coronary artery bypass surgery in Brazil: Analysis of the national reality through the BYPASS Registry. Braz J Cardiovasc Surg. 2019 Mar-Apr;34(2):142-8. doi: 10.21470/1678-9741-2018-0313.
11Gaia DF, Palma JH, Ferreira CBND, Souza JAM, Gimenes MV, Macedo MT, et al. Implante transcateter de valva aórtica: resultados atuais do desenvolvimento e implante de uma nova prótese brasileira. Braz J Cardiovasc Surg. 2011 Set;26(3):338-47. doi: 10.5935/1678-9741.20110007.
12Buffolo E, Andrade JCS, Branco JNR, Teles C, Gomes WJ, Aguiar LF, Fonseca JHP. Revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea: análise dos resultados em 15 anos de experiência. Rev Bras Cir Cardiovasc. 2001;16(1):1-6. doi: 10.1590/S0102-76382001000100001.
13Wanderley J Neto, Buffolo E, Mendonça JT. Brazilian Academy of Cardiovascular Surgery: From idea to reality. Braz J Cardiovasc Surg. 2020 Dec 1;35(6):IV-VI. doi: 10.21470/1678-9741-1-2020-0631.
14Prof. Dr. Enio Buffolo | Memória SPDM [Internet] [citado 29 out. 2025]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TpLYaL0NT1Q.

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