Era por volta das 22h30 de uma segunda-feira quando LSA., policial de 35 anos de idade, voltava para casa acompanhado de duas colegas da academia. Tudo indicava que seria mais um início de semana comum, até que o trio foi surpreendido por um veículo que os fechou e lançou voz de assalto, próximo à residência de LSA. Nesse momento, obedecendo às ordens dos assaltantes, LSA levantou os braços e desembarcou do carro em que estava.
Na tentativa de proteger suas colegas e retirá-las da zona de perigo, o policial correu para trás do veículo em que estava e tentou sacar sua arma, quando foi surpreendido frontalmente por um dos assaltantes. Cercado, LSA reagiu e imediatamente levou dois tiros na parte lateral (subaxilar) de seu corpo.
Os assaltantes fugiram e LSA, ferido, caminhou até sua residência com os dois projéteis alojados no corpo. Até a chegada do socorro, LSA. relatou que não sentia nenhum tipo de dor ou falta de ar. No percurso até o hospital, entretanto, o policial começou a sentir dificuldades respiratórias. Naquele momento, ele percebeu que havia algo de errado.
Após a chegada no hospital, LSA. foi estabilizado clinicamente e realizou alguns exames. Em seguida, foi transferido para a Unidade de Terapia Intensiva, onde ficou quatro dias internado, e recebeu a informação de que havia dois projéteis em seu corpo: um projétil alojado superficialmente, acima do músculo reto abdominal, e outro alojado muito próximo ao coração. Essa era a única informação que possuía.
Radiografia de tórax demonstrando um dos projéteis. Fonte: arquivo pessoal.
Logo que foi transferido para o quarto, outra surpresa: LSA foi diagnosticado com embolia pulmonar, e teve de retornar aos cuidados intensivos na UTI. Após nova estabilização clínica, voltou para o quarto e recebeu alta hospitalar, totalizando 14 dias de internação.
LSA foi para casa seguindo as orientações médicas, e voltou a praticar suas atividades rotineiras normalmente, sem nenhuma restrição ou sintoma clínico, apesar de ter conhecimento de que um dos projéteis ainda estava alojado muito próximo ao seu coração.
Mesmo sem nenhuma queixa ou sintoma, LSA resolveu consultar-se com um cirurgião cardíaco de sua cidade, a pedido de familiares. Durante a consulta, o cirurgião avaliou o caso e achou a situação controversa; nessas circunstâncias, solicitou novos exames para melhor elucidação dos fatos.
Quando vieram os resultados, o inacreditável aconteceu: um dos projéteis estava alojado no coração do policial! Três dias depois, LSA foi internado novamente e realizou a cirurgia para retirada do projétil.
Imagem demonstrando os projéteis a olho nu na região paraesternal direita. Fonte: arquivo pessoal.
O BJCVS Blog também conversou com o cirurgião que operou LSA. O profissional é o Dr. Marco Antônio Volpe, que concedeu a breve entrevista a seguir:
BJCVS Blog: Como foi para o senhor receber este paciente?
Dr. Volpe: O paciente veio a pedido de uma grande amiga. Ele já havia recebido alta hospitalar aqui em São Paulo, mas me chamou atenção o fato de que um dos projéteis estava em uma topografia muito próxima ao coração. Causou-me estranheza o fato de o rapaz ter recebido alta hospitalar nessa condição. Nesse momento, solicitei os exames anteriores e alguns novos, para tentar identificar com exatidão onde o projétil estava alojado.
BJCVS Blog: O senhor já imaginava que o projétil estaria alojado dentro do coração do paciente?
Dr. Volpe: Sabíamos que um dos projéteis estava alojado superficialmente, sendo inclusive palpável no subcutâneo. O outro projétil, entretanto, não tinha sua localização descrita com precisão. Realizamos outros exames complementares nos melhores hospitais de São Paulo, mas ninguém conseguia determinar se o projétil estava dentro ou fora do coração. E isso era preocupante, porque podia causar um dano cardíaco irreparável dependendo da localização. Assim, resolvi ligar para o serviço de ecocardiografia do hospital que deu alta para o policial e, quando repetiram o exame, ficaram surpresos ao notar que a bala estava alojada dentro do coração!
BJCVS Blog: A partir de então, como o senhor manejou o paciente?
Dr. Volpe: O policial levou um susto ao descobrir que a bala estava alojada no coração, pois havia recebido alta e não apresentava queixas respiratórias ou cardiovasculares. Após esclarecermos todos os fatos, internamos o paciente para a retirada. Solicitamos uma ecocardiografia transesofágica intraoperatória e, pasmem, ainda houve dificuldades para o ecocardiografista encontrar o projétil. Por sorte, ao abrirmos o pericárdio, podíamos palpar o projétil na parede diafragmática do ventrículo direito. Em função disso, fizemos a cirurgia com circulação extracorpórea, realizamos a ventriculotomia e posteriormente a rafia do ventrículo direito.
BJCVS Blog: O senhor já havia passado por alguma situação semelhante?
Dr. Volpe: Não, eu nunca havia passado por isso. Primeiro porque é difícil que um paciente sobreviva a um tiro no coração, principalmente por mais de 60 dias, sem apresentação clínica importante. Inclusive na literatura há escassez de relatos sobre o assunto. Foi tudo muito inusitado, mas felizmente hoje o paciente encontra-se bem!
O policial teve sua história publicada recentemente em um fascinante relato de caso no Brazilian Journal of Cardiovascular Surgery. Você pode acessá-lo aqui. Além disso, LSA também entrará para a história do Guinness World Records, por ser a pessoa que ficou mais tempo na história mundial com um projétil de arma de fogo alojado em seu coração, totalizando 65 dias.
”O que eu vivi é inexplicável. Tudo o que aconteceu, no momento da minha vida em que isso aconteceu e da forma como tudo se desenrolou, é incrível. É difícil explicar por palavras. Hoje eu valorizo mais as coisas do dia a dia, minha família. As pequenas coisas do cotidiano”, conta o policial.
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