Necessidade mundial de cirurgia cardíaca

Recentemente foi publicada uma pesquisa multicêntrica por Zilla et al.[1] para avaliar as necessidades e capacidades cirúrgicas cardíacas em países de baixa renda (PBR) e de média renda (PMR), em comparação com os de alta renda (PAR). Alguns países forneceram informações para estimar os dados da pesquisa e os dados de outros países foram coletados da literatura.

Nos PBR, as duas principais necessidades em cirurgia cardíaca são a doença cardíaca congênita (DCC) e a doença reumática cardíaca (DRC). Estudos estimam que ocorrem 2,2-14 defeitos cardíacos a cada 1.000 nascidos vivos. Nos Estados Unidos e na Alemanha, são realizadas 8 cirurgias a cada 1.000 nascidos vivos. Dada a situação dos PBR, uma estimativa conservadora seria a de que ocorre 1 cirurgia a cada 400 nascidos vivos. Com isso, como as taxas de natalidade dos PBR variam de 32 a 43, estima-se que são necessárias de 80 a 110 cirurgias para DCC para cada milhão de nascimentos. Já no caso de adolescentes e adultos, é estimado um fardo de 33 milhões de pessoas com DRC, praticamente a mesma quantidade de pessoas com Aids no mundo. Essa desproporção de cerca de 3 a 4 vezes mais DRC que DCC é explicada no estudo, ao mostrar que uma grande quantidade de casos de DCC ficam silenciosos e só são diagnosticados quando se tornam inoperáveis; por outro lado, os adolescentes e adultos procuram assistência assim que têm sintomas. Na estimativa final para os PBR, a estimativa conservadora da necessidade de cirurgias chega de 300 a 400 para cada milhão de habitantes.

Uma análise feita foi a da transição epidemiológica que acompanha a transformação do status de baixa para alta renda, em que houve uma troca gradual de pacientes jovens com DRC para pacientes mais velhos com doenças degenerativas (Figuras 1 a 3).

Figura 1. Situação socioeconômica de 16 países: 1 PBR (Moçambique), 4 PMR baixa (Índia, Nigéria, Marrocos, Tunísia), 8 PMR alta (Namíbia, Argélia, Irã, África do Sul, Cuba, China, Brasil, Rússia) e 3 PAR (Alemanha, Singapura e Estados Unidos).
Figura 2. Relação entre o número anual de cirurgias cardíacas e cirurgiões cardíacos por milhão de habitante em números absolutos dos países.
Figura 3. Transição epidemiológica refletida pela necessidade anual de cirurgia cardíaca.
Enquanto o acesso à cirurgia cardíaca é amplamente escasso nos PBR, ela é acessível, mas muitas vezes restrita, em muitos dos PMR, resultando em > 70% da população mundial tendo acesso limitado ou não tendo acesso ao serviço.
O estudo também mostrou que a renda per capita não se relacionava com o fornecimento de cirurgia cardíaca, mesmo que relacionada com o gasto com saúde (Figura 4). De modo semelhante, a quantidade de cirurgiões por milhão de habitantes também não se traduziu em mais cirurgias cardíacas (Figuras 2 e 5).
Figura 4. Número de cirurgias cardíacas por milhão de habitantes por ano relacionadas com a renda per capita de cada país.
Figura 5. Mapa múndi mostrando o número de cirurgiões cardíacos por milhão de habitante dos países participantes do estudo.

Dois fatores foram descritos como parâmetros que determinam a transição epidemiológica e socioeconômica: a porcentagem de cirurgia de revascularização isolada (espera-se que aumente de números baixos [i.e., 9% na China] para mais de 50% dos procedimentos [50% na Rússia, 53% no Brasil, 51% na Alemanha,…]), e o número total de cirurgias cardíacas realizadas por milhão de habitante (0,5 por milhão na Nigéria vs. 1.243 por milhão na Alemanha).

Apesar de estudos deste tipo mostrarem uma realidade triste, de desigualdade não apenas socioeconômica, mas também de saúde, eles são importantes pelo mesmo motivo. O Brasil segue em sua transição epidemiológica, e devemos seguir em frente para não retornar ao passado.

Referência

1. Zilla P, Yacoub M, Zuhlke L, Beyersdorf F, Sliwa K, Khubulava G, et al. Global Unmet Needs in Cardiac Surgery. Glob Heart. 2018.

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