Este mês, comemora-se 50 anos do primeiro transplante cardíaco em seres humanos. Você com certeza já deve ter ouvido falar que a África do Sul foi palco de um dos mais conhecidos regimes de segregação racial do mundo. Mas sabia que o apartheid influenciou até mesmo a cirurgia cardíaca?
O apartheid foi adotado entre 1948 e 1991 na África do Sul; assim, os serviços públicos básicos, como saúde e educação, e até mesmo áreas residenciais, foram segregadas de acordo com os “grupos raciais”. Muitas personalidades importantes ficaram conhecidas nesse período, como é o caso do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela, que ganhou o prêmio Nobel da Paz em 1993.
Outro personagem sul-africano que se tornou famoso em todo o mundo durante esse regime foi Christiaan Barnard, cirurgião cardiovascular que teve seu rosto estampado nas capas das principais revistas da época ao realizar o primeiro transplante cardíaco da história. Dois anos antes de o homem pisar na Lua, disputava-se uma verdadeira “corrida” na cirurgia cardiovascular: três equipes de cirurgiões lideradas por americanos (Norman Shumway em Stanford, Richard Lower na Virgínia e Adrian Kantrowitz em Nova York) e uma na África do Sul, liderada por Christiaan Barnard, pesquisavam métodos para realizar o primeiro transplante de coração em humanos.
Capa da revista Time mostrando o Dr. Christiaan Barnard.
O livro Cada segundo conta: a corrida pelo primeiro transplante de coração, escrito por Donald McRae, conta a história dessa corrida apresentando questões éticas como um dos temas centrais. A flexibilidade das leis sul-africanas para determinar o óbito foi, provavelmente, o principal fator que determinou o pioneirismo da equipe daquele país em relação às equipes americanas. Nos Estados Unidos, na década de 1960, só era considerado óbito quando havia parada cardiorrespiratória, o que aponta para uma questão ética que dificultou o transplante de coração em humanos no país. Todavia, essas equipes já haviam realizado a cirurgia em animais.
O nível técnico entre as equipes americanas e a equipe sul-africana era tão próximo que, três dias após o primeiro transplante, Kantrowitz realizou o primeiro transplante de coração nos Estados Unidos, em um bebê de 19 meses, que sobreviveu apenas 6 horas. Quanto ao apartheid, este também representou um importante fator ético envolvido. Após o sucesso da cirurgia, o governo sul-africano utilizou o fato para fazer propaganda positiva da África do Sul no cenário internacional, financiando inclusive o próprio cirurgião Christiaan Barnard em viagens ao exterior.
Entretanto, o líder da equipe de cirurgiões que realizou o primeiro transplante cardíaco no mundo não era um defensor do regime. Ao contrário, via todos os seres humanos como iguais, sob influência de seu pai, um missionário que realizava celebrações para congregações inter-raciais. Barnard cresceu, portanto, cercado por uma marcante e rara miscigenação, o que contribuiu para sua conquista, tendo em vista que, durante suas pesquisas em laboratório de cirurgia experimental, trabalhou ao lado de cirurgiões e anestesistas negros (embora oficialmente fossem chamados de assistentes de laboratório).
Apesar de todas as questões éticas e políticas envolvidas, Christiaan Barnard realizou o primeiro transplante de coração no dia 03 de dezembro de 1967, no hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo. O paciente foi o judeu Louis Washkansky e a doadora foi a jovem Denise Darvall. Considerada um sucesso, a operação durou cerca de 5 horas e mais de 30 pessoas faziam parte da equipe.
Hospital Groote Schuur na época do primeiro transplante.
O pós-operatório foi acompanhado de forma cuidadosa para evitar rejeição do órgão (por meio de imunossupressão) e infecções (o paciente e todos os profissionais com quem ele tinha contato passaram por exames bacteriológicos, além de um forte rigor com técnicas de antissepsia e assepsia). Washkansky faleceu 18 dias depois, em razão de uma pneumonia bilateral decorrente da imunossupressão. A escolha dos pacientes envolvidos foi feita de forma meticulosa para gerar a menor polêmica possível no país. Ainda assim, o transplante foi notícia em todo o mundo, o que gerou duras críticas à equipe, como acusações de “querer ser Deus”.
A questão racial marcou um curioso paradoxo. Após o sucesso da primeira cirurgia, Barnard realizou seu segundo transplante cardíaco menos de 1 mês após o primeiro. Seu paciente era o dentista Philip Blaiberg e seu doador, um homem negro. Essa operação repercutiu novamente na imprensa mundial, tendo em vista que transfusões sanguíneas entre negros e brancos eram proibidas no país. Blaiberg sobreviveu por 19 meses. Contudo, há uma polêmica sobre a qualidade de vida do paciente após o transplante. Apesar de ter sido noticiado que o paciente esteve forte e saudável, alguns relatos apontam que ele passou seus últimos meses extremamente debilitado.
Ainda no livro Cada segundo conta, McRae relata uma passagem cômica. Dr. Barnard conta que seu motorista, após assistir a muitas palestras sobre transplante cardíaco, trocou seu uniforme com ele, pois estava extremamente cansado. Naquela noite, o motorista palestrou em seu lugar e o médico, vestido de motorista, sentou-se com a plateia. O famoso Dr. Michael DeBakey estava também assistindo e, sem se dar conta dessa substituição, fez uma pergunta ao palestrante, que prontamente respondeu: “Estou surpreso que um homem com todo o seu conhecimento tenha feito uma pergunta tão simples. Para lhe mostrar o quanto sua pergunta é simples, vou deixar que o meu motorista a responda!”
O primeiro transplante cardíaco no Brasil foi realizado em 1968, um ano após o primeiro transplante cardíaco do mundo, pelo Dr. Euryclides Zerbini, no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Nas décadas seguintes, foram desenvolvidas novas drogas capazes de evitar a rejeição do órgão, aumentando assim a segurança da operação. Em 2016, foram realizados 357 transplantes de coração e estima-se que, em 2017, serão realizados 371. A Cirurgia Cardiovascular continua evoluindo para poder salvar cada vez mais vidas!
BIBLIOGRAFIA
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