A história da anatomia remonta a milhares de anos, quando os egípcios realizavam exames análogos às necropsias dos dias de hoje. A evolução da anatomia, entretanto, se iniciou de fato com os gregos, que foram os primeiros a descrever nomenclaturas, métodos e aplicações para o estudo anatômico. Empedocles, em 480AC, já identificava o coração como o principal órgão do sistema vascular. Por volta da mesma época, Hipócrates descrevia a valva mitral e sua função. Durante a Idade Média, a dissecação de corpos humanos foi proibida em grande parte da Europa e apenas no século XII os estudos anatômicos passaram a ser novamente realizados, dessa vez na Itália. Alguns anatomistas italianos importantes que se destacaram a partir desta época foram Mondino de Luzzi “Mundinus”, Alessandro Achillini, Antonio Benivieni e o próprio Leonardo da Vinci. Realdus Columbus, um anatomista italiano do século XVI, distinguiu-se ao descrever a forma e as cavidades do coração, a estrutura do tronco pulmonar, aorta e suas válvulas, delineando o curso do sangue do lado direito para o esquerdo do coração. Na Inglaterra, em 1628, o médico inglês William Harvey descreveu em sua obra “De moto cordis et sanguinis” a circulação do sangue através de vasos sanguíneos, a partir de observações que ele fez durante dissecções dos corpos de seu próprio pai e irmã.
No início do século XX, a anatomia não patológica do coração (e demais órgãos) já encontrava-se descrita em detalhes, mas o mesmo não era verdade no caso das anomalias congênitas. Uma das pioneiras em descrever a anatomia das cardiopatias congênitas foi a Drª Maude Abbott. Abbott formou-se, em 1894, uma das primeiras médicas do Canadá (e do mundo). Como mulher, na época, foi impedida de exercer suas habilidades clínicas, sendo encarregada de cuidar do museu de patologia da Universidade de McGill. Seu espírito curioso e questionador, entretanto, tornou um trabalho que parecia pouco promissor em uma excelente oportunidade. Abbott passou a estudar profundamente a anatomia cardíaca, com ênfase nas malformações congênitas, e, ao longo de 20 anos, descreveu mais de mil corações, publicando o primeiro “Atlas of Congenital Cardiac Disease”, abrindo caminho para melhorias no diagnóstico e alavancando avanços clínicos e cirúrgicos na área. Na sequência, já na metade do século XX, duas grandes escolas anatômicas foram desenvolvidas, a dos Van Praagh e a de Anderson. Na década de 1960, os Drs. Richard e Stella van Praagh analisaram e catalogaram sistematicamente o registro cardíaco do Children’s Hospital Boston, descrevendo a anatomia patológica das cardiopatias congênitas com base no desenvolvimento embriológico do coração e criando as bases para a cardiologia e a cirurgia cardíaca pediátrica moderna nos EUA. O Dr. Robert Anderson, médico patologista do University College London, por vez, foi responsável pelo desenvolvimento da escola europeia, na qual as cardiopatias congênitas são descritas pelo método da análise segmentar sequencial. Até hoje, ambas as nomenclaturas, dos Van Praagh e de Anderson, são utilizadas em todo o mundo, com uma ou outra sendo considerada preferencial de acordo com a região geográfica. No Brasil, graças aos trabalhos da Profª Vera Aiello, que segue a escola européia, a nomenclatura mais comumente utilizada é a de Anderson.
Com a chegada do século XXI e a evolução exponencial de diversas áreas da Medicina, a anatomia passou a ser vista como uma ciência “velha”, não permitindo grandes avanços além de tudo o que já fora descrito. De fato, descobertas anatômicas como no passado não fazem mais parte do dia-a-dia, mas a anatomia também evoluiu e passou a se desenvolver em campos alternativos, como por exemplo o estudo das alterações morfológicas dinâmicas ou de regiões específicas no contexto de diferentes patologias. Um exemplo de estudo em anatomia cardíaca desenvolvido recentemente no Brasil é o trabalho revolucionário do Prof. Alexandre Hueb, “Ventricular remodeling and mitral valve modifications in dilated cardiomyopathy: New insights from anatomic study”, descrevendo que, diferente do que se pensava na época de sua publicação, 1) a dilatação do anel mitral na cardiomiopatia dilatada é proporcional e não afeta exclusivamente a porção posterior, e 2) o grau de dilatação ventricular não determina o grau de dilatação do anel mitral, sendo esses processos independentes. Essas observações deram nova luz às técnicas utilizadas para corrigir a insuficiência valvar mitral na cardiomiopatia dilatada e o trabalho foi citado por quase outros 200 artigos.
Tecnologias como exames de imagem de alta resolução, impressão 3D e realidade virtual são exemplos do que podemos esperar para o estudo e ensino da anatomia nos próximos anos. Ao passo que o uso de imagens de RNM permite a realização de necropsias virtuais e a aquisição de espécimes anatômicos digitais, a impressão 3D e os óculos de realidade virtual dão ao estudante e ao médico, em especial ao cirurgião, a possibilidade de estudar anatomia (normal, patológica ou mesmo de um paciente específico) a partir de qualquer lugar, seja no hospital ou em casa, e com uma série de recursos associados que não estão disponíveis com as peças anatômicas tradicionais. Independente de como se der a evolução dos estudos anatômicos, a morfologia cardíaca continuará por todo sempre sendo a base para o desenvolvimento e a realização da cirurgia cardiovascular.
0