Modelos animais constituem um dos pilares para o desenvolvimento científico. Embora carreguem questões éticas, muitas vezes polêmicas, seu uso é de indiscutível importância para o avanço da Medicina. Embora mais comum no desenvolvimento de novas drogas para tratamento clínico, o uso de modelos animais é essencial na criação e aperfeiçoamento de novas técnicas cirúrgicas. Considerada por muitos como a primeira cirurgia cardiovascular, o shunt de Blalock-Taussig (ou Blalock–Thomas–Taussig) foi desenvolvido em modelos animais caninos por meses, antes de ser realizado pela primeira vez em uma criança, tendo requerido quase duas centenas de cães até conseguir ser replicado com sucesso. Desde então, a cirurgia cardiovascular tem sido campo de frutífero uso de modelos animais.
Atualmente, existem modelos animais para uma enorme variedade de doenças cardiovasculares, muitas delas cirúrgicas. Alguns modelos de especial interesse são o infarto por oclusão da coronária e a insuficiência cardíaca por bandagem arterial ou induzida por drogas. Estes modelos constituem a base para muitas das pesquisas em cardiologia e cirurgia cardiovascular. O primeiro, como se pode imaginar, consiste no bloqueio do fluxo sanguíneo por uma artéria coronária, em geral a descendente anterior. Tal bloqueio pode ser realizado por oclusão interna, com um balão, ou externa, seja por ligadura ou o pelo uso de alguma espécie de anel compressor. Dessa maneira, o miocárdio afetado pode progredir com necrose, dependendo do tempo em que a oclusão for mantida, permitindo o estudo de diferentes abordagens terapêuticas para o infarto do miocárdio, clínicas ou cirúrgicas, inclusive a aplicação de células-tronco. Embora esse mesmo modelo possa ser utilizado como modelo para insuficiência cardíaca, outras duas comuns opções são, como dito anteriormente, a bandagem arterial e a toxicidade induzida por drogas. Enquanto o modelo baseado em bandagem arterial resulta em uma cardiomiopatia hipertrófica e, portanto, mimetiza as insuficiências cardíacas com esse achado, o modelo no uso de drogas cursa com o desenvolvimento de uma cardiomiopatia dilatada, com perda de cardiomiócitos, mimetizando o outro espectro da doença.
Em geral, a bandagem arterial é realizada na aorta, para o estudo da falência do ventrículo esquerdo, através de um simples laço ao redor da aorta ascendente. Métodos mais complexos e para outras finalidades, entretanto, vêm sendo desenvolvidos, sendo um deles inclusive criado no Brasil e patenteado por pesquisadores do Instituto do Coração (InCor). Trata-se de um sistema de bandagem ajustável baseado em um anel de silicone com ar em seu interior; conforme é injetado ou retirado o ar do anel, a bandagem torna-se mais ou menos apertada, permitindo controlar o grau de estenose na artéria de interesse. Diversos artigos foram publicados pelo grupo de pesquisadores no BJCVS e podem ser encontrados no seguinte link: http://bit.ly/2eR2Cls. Em relação ao modelo de insuficiência cardíaca baseado no uso de drogas, o medicamento mais comumente utilizado é a doxorrubicina. Esta droga é um fármaco utilizado em quimioterapia e conhecida por apresentar importante cardiotoxicidade, sendo a insuficiência cardíaca decorrente dela altamente letal. Embora apenas 2% dos pacientes tratados com a droga desenvolvam a doença, 50% destes evoluem a óbito em até 1 ano. Dessa forma, não é difícil compreender seu uso para mimetizar a insuficiência cardíaca em modelos animais.
Modelos animais saudáveis também podem ser utilizados para estudos em cirurgia cardiovascular. Diariamente, novas terapias são desenvolvidas para substituição vascular, valvar ou mesmo de todo o coração, como é o caso dos ventrículos artificiais. Tais terapias devem ser testadas em animais antes de serem aplicadas em humanos e diferentes modelos podem ser utilizados para isso. Enxertos vasculares, em geral, são testados em pequenos animais, como ratos e coelhos, enquanto valvas são testadas em animais de médio porte, como porcos, e ventrículos artificiais costumam ter sua eficácia e segurança avaliadas em modelos de grande porte, como cabras ou ovelhas. Tais convenções não são regras e a escolha do modelo costuma variar conforme o grupo de pesquisa.
A falta de um modelo animal padrão para cada aplicação, entretanto, traz questionamentos sobre o potencial de translação dos achados, bem como aquece as discussões sobre a ética no uso de modelos animais. Em um artigo recentemente publicado pela revista científica Tissue Engineering, Liguori et al. trazem uma profunda discussão sobre os aspectos legais, a teoria moral, os 3Rs, e a análise de dano-benefício envolvidos no uso de modelos animais para engenharia de tecidos, inclusive enxertos cardiovasculares. Um dos pontos levantados pelos autores é de que muitas vezes os modelos animais são escolhidos baseados em uma questão de praticidade e custo, o que dificilmente anda em paralelo com rigor científico. Questiona-se que uma grande porcentagem dos achados não apresentam qualquer valor para a aplicação clínica e, portanto, representaram na verdade um gasto de recursos e vidas maior do que se os modelos animais fossem escolhidos de acordo com seu potencial de translação. Baseados nisso, os autores criaram um fluxograma, acompanhado por uma representação gráfica, para orientar a realização de estudos experimentais de acordo com o potencial de translação do modelo animal escolhido. O artigo completo pode ser encontrado no link: http://bit.ly/TEC-2017-0189.
O uso de modelos animais é algo que acompanha a cirurgia cardiovascular desde seu nascimento, e deve continuar acompanhando ainda por alguns anos. Novas tecnologias de simulação vêm sendo criadas e provavelmente permitirão substituir o uso de animais para experimentação. No momento, entretanto, ainda não há alternativas que mimetizam melhor a anatomia e fisiopatologia humanas do que os modelos animais.
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