No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou a Covid-19 ao status de pandemia. A mudança de classificação gerou um sentimento de pânico nas redes sociais, em razão das incertezas em relação à doença, mas também levantou um importante questionamento acerca dos critérios necessários para declarar a doença como uma pandemia.
Esse questionamento ocorreu principalmente pelo fato de existirem outras doenças em nosso país que também apresentam um grau de importância significativo para a saúde da população, mas que não são classificadas como epidemias ou pandemias, como a infecção pelo novo coronavírus. O maior exemplo são as doenças cardiovasculares.
De acordo com o Cardiômetro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (clique aqui para acessar), de 01/01/2020 a 05/04/2020, cerca de 104 mil pessoas foram a óbito em decorrência de alguma doença relacionada ao aparelho cardiovascular no Brasil. Ou seja, a cada 90 segundos uma pessoa morreu em decorrência das doenças cardiovasculares em nosso país. Nesse mesmo período, a infecção pelo coronavírus levou a óbito cerca de 62.784 pessoas no mundo inteiro, de acordo com o último relatório da OMS1.
Não é difícil perceber que as doenças cardiovasculares mataram, somente no Brasil, quase o dobro do que o coronavírus matou no mundo em 2020. O mesmo raciocínio pode ser aplicado para outras doenças como a tuberculose e a malária, e para causas externas como violência e acidentes de trânsito. Esses números permitem entender o questionamento feito inicialmente: por que essas doenças, em especial as doenças cardiovasculares, também não são consideradas uma epidemia?
Para responder a esse questionamento, precisamos recorrer a alguns conceitos básicos de vigilância em saúde. O comportamento normal de uma doença é conhecido como processo endêmico. Ou seja, quando uma doença atinge uma determinada população dentro dos padrões esperados para aquela região durante um certo período, classificamos essa doença como endêmica. Ou seja, a endemia é caracterizada como a ocorrência de uma doença dentro dos padrões regulares e sazonais em uma determinada população.
Neste momento você pode estar se perguntando: mas como eu saberei se o número de casos para essa doença está dentro do esperado para essa população? Para isso, é necessário estabelecer previamente o nível esperado da doença, e um dos principais métodos utilizados para obter esse conhecimento é por intermédio de um gráfico chamado diagrama de controle (Figura 2).
O diagrama de controle consiste na representação gráfica da média mensal de uma determinada doença durante um período de 10 anos de análise, permitindo variações para cima ou para baixo. Por meio desse gráfico podemos analisar o comportamento normal de uma doença em determinada população e, quando ocorrer uma alteração anormal nesse comportamento, conseguimos detectá-la.
A partir do momento em que ocorre uma alteração anormal ou brusca no comportamento dessa doença (p. ex., aumento súbito nos números de infarto do miocárdio no Brasil em janeiro), chamamos esse processo de epidemia. Ou seja, quando o número de casos supera o padrão normal esperado, estamos diante de um processo epidêmico.
Percebam que o termo epidemia não significa um grande número de casos. Epidemia significa um excesso de casos em comparação à frequência normal. Portanto, podemos ter um único caso de uma doença e classificar essa doença como epidemia? A resposta, por incrível que pareça, é sim!
Citando como exemplo a Covid-19, o padrão esperado para essa doença na população brasileira é zero. O mesmo padrão se repete para os Estados Unidos, França, Alemanha, Japão, Coreia do Norte etc… Ou seja, o simples fato de fugir ao padrão esperado para a população mundial classifica a infecção pelo novo coronavírus como uma epidemia; ainda, por atingir vários países, essa epidemia pode também ser chamada de pandemia.
Com esses conceitos em mente, conseguiremos entender o motivo pelo qual a infecção pelo vírus é uma pandemia enquanto a doença cardiovascular em nossa população não é. Tudo está relacionado ao conceito. Infelizmente, esse número de mortes pelas doenças cardiovasculares no Brasil está dentro do esperado. Está dentro do esperado que as doenças cardiovasculares levem quase três brasileiros a óbito desde que você começou a ler este texto. É lamentável, mas esse é o motivo.
Por isso, é importante que a prevenção seja realizada de acordo com a orientação de seu município/estado. Ficar em casa não significa dar importância menor às doenças cardiovasculares ou aos acidentes de trânsito. Ficar em casa significa ter a consciência de que estamos passando por um processo epidêmico e não endêmico, uma vez que foge do padrão esperado.
REFERÊNCIA
1. World Health Organization. Coronavirus disease 2019 (COVID-19) Situation Report-76. Reports. 5 April 2020.
8