A medicina foi, por muito tempo, uma profissão proibida para mulheres. Mesmo assim, temos exemplos de várias mulheres que romperam paradigmas para exercê-la. Agnodice (séc III A.C, Grécia), considerada a primeira médica, vestia roupas masculinas para frequentar aulas de anatomia, destacando-se, posteriormente, na prática ginecológica. A notável cirurgiã militar Miranda Stewart, diplomada em 1812 pela Universidade de Edimburgo, precisou disfarçar-se de homem, com o nome de James Barry, para exercer a medicina. No Brasil, Rita Lobato quebrou tabus para se tornar a primeira médica diplomada em uma universidade brasileira, em 1887. A norte-americana Nina Braunwald destacou-se por seu pioneirismo no desenvolvimento de próteses mitrais, sendo a primeira mulher a realizar uma cirurgia cardíaca assim como a primeira eleita a congregar a Associação Americana de Cirurgia Torácica, em 1961.
Desde as primeiras diplomadas, o espaço feminino conquistado nos cursos médicos tem crescido significativamente, chegando atualmente a uma ocupação semelhante de vagas entre homens e mulheres. Centros nacionais, como a faculdade de medicina da UFRJ, que tinha representatividade feminina de 10% em 1950, possui, nas últimas décadas, em torno de 60% de mulheres em seu corpo discente.
Esse padrão de distribuição, todavia, não tem se refletido em especialidades cirúrgicas. Segundo registro do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC, 2008), o número nacional de cirurgiãs gira em torno de 12%. Já nos EUA, essa porcentagem é mais significativa, com uma representação feminina de 38% nessas residências.
Essa diferença se torna mais evidente ao se analisar especificamente a cirurgia cardíaca. Apenas 6,9% dos cirurgiões cardiotorácicos norte-americanos são mulheres. No Brasil, essa porcentagem é aproximadamente 3,8%, sendo esta a menor representatividade feminina dentre as especialidades listadas pelo CBC.
Neste contexto, é inevitável o questionamento:
O que tem limitado a plena inserção da mulher na cirurgia
e, particularmente, na área de atuação cardíaca?
Recentes estudos têm indicado os seguintes aspectos como determinantes nessa conjuntura:
1.Falta de mentoras cirurgiãs que sejam modelos inspiracionais
Role models são decisivos na escolha da especialidade: 67% dos residentes mentoriados optam pela mesma carreira de seu tutor. Adicionalmente, orientadores são modelo no equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, por isso, a figura da mentora que inspira e mostra a viabilidade de uma carreira bem sucedida e uma vida familiar saudável é particularmente importante para mulheres que estão pensando em optar por uma especialidade que requer elevada dedicação.
2. Desproporção de oportunidades, principalmente para cargos de liderança
Apesar da significativa porcentagem de mulheres residentes em cirurgia (38%), apenas 1% chega à posição de chefe de serviço. Estudo canadense mostrou que grande parte das cirurgiãs se sentem ‘deixadas em segundo plano’ pelo fato de serem mulheres, durante a escolha de posições de liderança. Por isso, é importante estruturar um meio profissional que capacite e viabilize mulheres a assumirem cargos de chefia.
3. Escassez de suporte no ambiente profissional e familiar
O sucesso no equilíbrio entre uma especialidade com longa curva de aprendizado e demandas pessoais, como a maternidade, requer uma rede de suporte familiar e profissional. Estes aspectos têm sido diretamente relacionados ao nível de satisfação na profissão e ao exercício pleno da medicina à longo prazo.
Pela necessidade de atenuar os fatores limitantes mencionados, sociedades como Women in Thoracic Surgery (WTS) e Association of Women Surgeons (AWS) foram criadas e têm sido um importante elo de integração e cooperação mútua entre mulheres cirurgiãs, residentes e acadêmicas.
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV) também tem contribuído com projetos motivacionais (à exemplo do vídeo Ballet de Mãos-As Cirurgiãs Cardiovasculares) e encontros integrativos entre mulheres membros da sociedade.
Esses esforços e, principalmente, a intensa motivação daquelas que optam pela especialidade, têm sido a força motriz de mudanças no cenário da mulher na cirurgia cardíaca. Há apenas 55 anos, a primeira mulher operava um coração, hoje temos centenas de notáveis cirurgiãs rompendo paradigmas e exercendo a profissão com maestria. A caminhada já foi iniciada, cabe às próximas gerações continuá-la com a resiliência, a coragem e a perseverança de nossas antecessoras.
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