Em 1968, a equipe do cirurgião Euryclides de Jesus Zerbini realizou o primeiro transplante cardíaco (Tx) do Brasil, quatro meses após o primeiro relato mundial da realização desse procedimento. Desde então, foram realizados em todo o mundo cerca de 150 mil transplantes, dos quais aproximadamente 5 mil foram realizados no Brasil ao longo dos últimos 50 anos1.
De acordo com o Registro Brasileiro de Transplantes, o Brasil possui 35 equipes habilitadas em Tx espalhadas em 12 estados brasileiros, sendo o estado de São Paulo responsável pelo maior número de Tx do país2. De acordo com o mesmo órgão, entre 2010 e 2020 foram realizados 3.057 Tx, apresentando um aumento de 127,7% no último ano3, como mostra a Figura 2 (A e B).
Neste contexto, o Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), por meio de uma parceria com o Ministério da Saúde, estabelecida desde 2002, tornou-se um dos maiores centros de referência de transplante de órgãos sólidos (fígado, rim, pâncreas-rim, coração, pulmão, intestino e multivisceral) do País. Entre 2002 e 2015, a instituição realizou cerca de 3.157 transplantes de órgãos sólidos, 93,4% deles pelo Sistema Único de Saúde e 6,6% privados4.
Atualmente o HIAE é o segundo maior centro de transplante cardíaco do estado de São Paulo, com resultados de sobrevida comparáveis aos melhores hospitais internacionais, como os americanos Cleveland Clinic e o hospital da Universidade da Califórnia, em Los Angeles4,5.
Diante disso, conversamos com a Doutora Paola Keese Montanhesi, formada em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em Cirurgia Cardiovascular pela Beneficência Portuguesa de São Paulo e membro da International Society for Minimally Invasive Cardiothoracic Surgery (ISMICS), sobre sua rotina na equipe de Tx do HIAE, liderada pelo Dr. Robinson Poffo.
- BJCVS: Antes de iniciarmos o nosso bate-papo sobre Tx, conte-nos um pouquinho sobre sua trajetória na cirurgia cardiovascular.
Dra. Paola Keese: Me formei em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2009 e me especializei em cirurgia cardiovascular na Beneficência Portuguesa de São Paulo em 2014. Durante minha formação, tive contato com diversas áreas de atuação dentro da cirurgia cardiovascular e me encantei pela cirurgia cardíaca pediátrica, influenciada fortemente pela atuação brilhante do Dr. José Pedro da Silva e sua equipe. Nesse período, complementei minha formação no Great Ormond Street Hospital (GOSH), em Londres (Reino Unido).
Permaneci focada no tratamento de cardiopatias congênitas até 2015, quando descobri uma nova paixão ao ser convidada a integrar o grupo pioneiro em cirurgia cardíaca robótica na América Latina, liderado pelo cirurgião cardiovascular Dr. Robinson Poffo. Minha inclusão no Programa de Transplante Cardíaco do Hospital Israelita Albert Einstein ocorreu poucos meses depois e encontrei na rotina do transplante a satisfação de atuar ao lado de grandes cirurgiões como o Dr. Poffo e o Dr. Carlos Tossuniam na luta incansável pela vida.
Em 2016, obtive o título de especialista pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular e, em 2018, o título de atuação em estimulação elétrica cardíaca implantável. No mesmo ano, me tornei membro da International Society for Minimally Invasive Cardiothoracic Surgery (ISMICS), sendo a primeira mulher brasileira com certificação em cirurgia cardíaca robótica a fazer parte dessa notável sociedade.
Atualmente, alterno minha prática entre o Programa de Transplante Cardíaco do HIAE, cirurgias convencionais e minimamente invasivas em diversos hospitais da capital paulista com o Dr. Poffo, plantões como intensivista em UTI geral ou cardiológica e atendimentos ambulatoriais para acompanhamento de casos pré e pós-operatórios. Além disso, busco sempre me atualizar, publicar artigos científicos e ensinar o que aprendi com muito carinho.
- BJCVS: Em média, quantos Tx são realizados anualmente?
Dra. Paola Keese: Realizamos entre 20 e 30 transplantes cardíacos ao ano.
- BJCVS: Qual a sua atuação na equipe?
Dra. Paola Keese: Na Equipe de Transplante Cardíaco somos cinco cirurgiões. As funções se alternam entre nós, para que as logísticas da captação e do implante possam ser adequadamente distribuídas e coordenadas. Assim, todos temos oportunidades semelhantes de exercitar as técnicas relacionadas à seleção do doador, proteção e coleta do órgão, preparo do enxerto em back-table, preparo e cardiectomia do receptor, implante do enxerto e revisão de hemostasia com ajuste hemodinâmico.
Além de tornar o processo mais ágil, garantir a qualidade e o crescimento profissional de todos os envolvidos e criar uma atmosfera participativa e responsável, essa prática repleta de variabilidade estimula e enriquece nossa experiência como cirurgiões e nos convida a vivenciar situações gratificantes e desafiadoras.
- BJCVS: Na sua concepção, qual o diferencial do HIAE, responsável pelos ótimos resultados de sobrevida dos pacientes submetidos ao Tx?
Dra. Paola Keese: Como dito anteriormente, o HIAE, por meio de uma parceria estabelecida em 2002 com o Ministério da Saúde, tornou-se um dos maiores centros de referência de transplante de órgãos sólidos do país. O Programa de Transplante Cardíaco faz parte dessa iniciativa e realiza aproximadamente 90% dos casos pelo Sistema Único de Saúde.
Seu sucesso é resultado do investimento institucional em tecnologia, agregando inovações com eficiência e gestão racional dos recursos, associadas à qualidade do atendimento prestado pela equipe multidisciplinar. Além disso, a capacitação de milhares de profissionais na área e o desenvolvimento concomitante de pesquisas e publicações em periódicos de impacto garantem a incorporação constante de melhorias diretamente relacionadas à prática clínica. Por exemplo, a incorporação de dispositivos de assistência ventricular mecânica trouxe novas perspectivas ao tratamento da insuficiência cardíaca, posicionando o Programa entre os poucos que podem contar com essa tecnologia rotineiramente.
- BJCVS: Na sua concepção, qual o futuro do Tx?
Dra. Paola Keese: O transplante cardíaco avança em diversas frentes. Nas últimas décadas, por exemplo, a evolução de terapias imunomoduladoras contribuiu substancialmente para prolongar a sobrevida dos pacientes.
No entanto, ainda enfrentamos desafios para otimizar a relação entre oferta e demanda de órgãos, considerando limitações geográficas e técnicas. Novas estratégias para conservação, recuperação e transporte do enxerto têm se mostrado úteis neste cenário para aumentar a oferta e melhorar a função do órgão transplantado. Dentre elas, podemos destacar a tecnologia Organ Care System – ou heart in a box – desenhada para manter a perfusão ex-vivo do órgão e proporcionar melhor desempenho pós-implante.
Também aposto na evolução de dispositivos temporários para o resgate hemodinâmico de pacientes críticos, como o balão intra-aórtico, ECMO, TandemHeart, Impella e Cardiobridge, que têm sido aperfeiçoados. No entanto, os maiores avanços tecnológicos serão vistos entre os dispositivos de longa permanência. Hoje seu implante como terapia de destino já supera o número total de transplantes nos Estados Unidos e temos uma nova geração de bombas com alta durabilidade, performance superior e menos efeitos colaterais. Acredito que o investimento nessa área será crucial para suprir a demanda por órgãos e aumentar a sobrevida dos pacientes.
Em um futuro próximo, novas possiblidades, como total artificial heart, terapias gênicas, pesquisas com células-tronco e engenharia de tecidos, também poderão despontar como alternativas no arsenal terapêutico. Estamos ansiosos.
- BJCVS: Houve algum Tx que marcou sua história?
Dra. Paola Keese: Muitos pacientes nos marcam ao longo da nossa jornada como médicos. Em especial no Programa de Transplantes, em razão do longo período de internação e acompanhamento intensivo dos casos, criamos vínculos fortes com os pacientes e seus familiares, torcemos por eles e nos emocionamos com eles. Isso torna o momento do seu primeiro implante algo inesquecível! Meu primeiro transplante “solo” trouxe uma mistura de satisfação por protagonizar o momento principal da cirurgia, o peso da responsabilidade sobre uma vida, a gratidão aos colegas que nos ajudaram a chegar até ali, o orgulho pelas escolhas e concessões feitas no caminho e o reconhecimento dos pares. Até hoje é impossível descrever o que senti quando o coração começou a bater no novo peito… Foi como se meu próprio coração tivesse parado e voltado a bater junto àquele, em um mesmo compasso, bombeando felicidade.
A equipe do BJCVS agradece sua participação!
REFERÊNCIAS
1.Instituto do Coração (Incor). Os 50 anos do transplante cardíaco. [Internet]. São Paulo. [acesso em: 2020 jun. 02]. Disponível em: http://referenciaincor.com.br/os-50-anos-do-transplante-cardiaco/
2.Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado (2012-2019). [Internet]. São Paulo. [acesso em: 2020 jun. 02]. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf
3.Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). Dados númericos da doação de órgãos e transplantes realizados por estado e instituição no período: janeiro/março – 2020. [Internet]. São Paulo. [acesso em: 2020 jun. 02]. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2020/RBT-2020-1trim-leitura.pdf
4.Hospital Israelita Albert Einstein. Diferenciais do Programa Einstein de Transplantes. [Internet]. São Paulo. [acesso em: 2020 jun. 02]. Disponível em: https://www.einstein.br/especialidades/transplantes/programa-einstein-transplantes/diferenciais
5.Hospital Israelita Albert Einstein. Einstein realiza centésimo transplante de coração. [Internet]. São Paulo. [acesso em: 2020 jun. 02]. Disponível em: https://www.einstein.br/especialidades/cardiologia/noticias/einstein-realiza-centesimo-transplante-coracao
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