AAS na prevenção primária de eventos cardiovasculares: qual a validade?

O uso do ácido acetilsalicílico (AAS ou aspirina) na prevenção secundária de eventos cardiovasculares já é consolidado e bem estabelecido, superando o risco de eventos hemorrágicos na população suscetível. Entretanto, seus benefícios na prevenção primária são incertos e não se sabe, ainda, o ganho real para os pacientes que dele fazem uso[1].

Os estudos pioneiros sobre a prevenção primária com uso de AAS datam do final da década de 1980. Os primeiros estudos não mostravam diferença estatística de mortalidade por eventos cardiovasculares, que era o desfecho primário, entre pacientes que utilizavam ou não a droga, mas o risco de infarto agudo do miocárdio (IAM) era reduzido nos que faziam o uso do AAS. Entretanto, críticas devem ser reservadas a esses estudos: as populações estudadas eram de homens adultos de meia-idade, sendo, assim, uma amostra com risco cardiovascular tipicamente baixo.

Estudos posteriores fizeram investigações do uso do AAS em grupos que sabidamente possuíam risco maior para eventos cardiovasculares: hipertensos, diabéticos, pacientes com índice tornozelo-braquial reduzido ou com vários fatores combinados.

Uma metanálise de 2009[2] reuniu dados de seis grandes estudos, com amostra total de 95 mil pacientes. Os indivíduos que fizeram uso do AAS tiveram 12% a menos de risco para eventos graves, como infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular encefálico (AVE) ou morte, comparados com pacientes que não recebiam a droga. Além disso, os pacientes que usaram AAS tiveram redução não significativa de AVE e aumento não significativo de AVE hemorrágico. Entretanto, o grupo AAS teve um aumento significativo de sangramentos gastrintestinais e extracranianos importantes comparado a quem não recebeu a droga.

Em 2018, três grandes ensaios foram publicados no The Lancet e no New England Journal of Medicine: ASPREE, ARRIVE e ASCEND. O ASPREE (Aspirin in Reducing Events in the Elderly) comparou o uso de 100 mg de AAS ao dia contra placebo em pacientes com mais de 70 anos e sem doença cardiovascular estabelecida, demência ou algum grau de incapacidade. O desfecho primário era uma composição de morte, demência ou incapacidade física persistente. O estudo foi encerrado após quase cinco anos em decorrência de futilidade: o AAS não teve impacto na redução da incapacidade física e/ou de eventos cardiovasculares e aumentou significativamente o risco de eventos hemorrágicos em comparação ao placebo.

            No estudo ARRIVE (Aspirin to Reduce Risk of Initial Vascular Events in patients at moderate risk of cardiovascular disease)[3], também foi comparado o uso de 100 mg de AAS ao dia contra placebo em uma população de pacientes maiores de 55 anos com fatores de risco para doença cardiovascular (mas sem doença cardiovascular aterosclerótica clinicamente evidenciada), como idade, dislipidemia, tabagismo, hipertensão arterial e histórico familiar. O desfecho primário era uma combinação de morte por evento cardiovascular, IAM, AVE, angina instável e ataque isquêmico transitório (AIT). O seguimento médio foi de 5 anos e o uso do AAS não teve impacto relevante no desfecho primário, mas aumentou de maneira significativa o risco de sangramentos gastrintestinais.

Já o estudo ASCEND (A Study of Cardiovascular Events iN Diabetes)[4] teve sua amostra formada por pacientes diabéticos, com mais de 40 anos, mas sem doença cardiovascular clínica. O desfecho primário também era uma composição de eventos cardiovasculares graves (AIT, IAM e AVE, ou morte decorrente de tais eventos). O seguimento desses pacientes foi de quase 8 anos. Apesar da ressalva de que esses pacientes tomavam outras medicações adjuvantes (como estatinas), o uso do AAS reduziu o risco do desfecho principal em relação ao placebo, com aumento do número de eventos hemorrágicos, sugerindo que o uso do AAS concomitante a outras medicações contribui para a diminuição do ambiente celular pró-inflamatório nesses pacientes.

O uso do AAS para prevenção primária possui pouco impacto na redução dos eventos cardiovasculares, consistente com estudos prévios já publicados. Assim, o uso do AAS deve ser discutido entre o médico e seu paciente, sendo uma decisão individualizada e comparando o real benefício na redução dos eventos cardiovasculares em relação ao risco de sangramento, custo, preferência pessoal, entre outros. Além disso, novos estudos devem ser realizados abordando de maneira mais individual as características clínicas de cada paciente.

 

REFERÊNCIAS

 

1. Patrono C, Baigent C. Role of aspirin in primary prevention of cardiovascular disease. Nat Rev Cardiol.

2. 2019.Antithrombotic Trialists’ (ATT) Collaboration. Aspirin in the primary and secondary prevention of vascular disease: collaborative meta-analysis of individual participant data from randomised trials. Lancet. 2009;373:1849-1860.

3. Gaziano JM, Brotons C, Coppolecchia R, Cricelli C, Darius H, Gorelick PB, et al. Use of aspirin to reduce risk of initial vascular events in patients at moderate risk of cardiovascular disease (ARRIVE): a randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Lancet. 2018;392:1036-1046.

4. McNeil JJ, Nelson MR, Woods RL, Lockery JE, Wolfe R, Reid CM, et al. Effect of aspirin on all-cause mortality in the healthy elderly. N Engl J Med. 2018;379:1519-1528.

5.The ASCEND Study Collaborative Group. Effects of aspirin for primary prevention in persons with diabetes mellitus. N Engl J Med. 2018;379:1529-1539.

 

 

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