O anel mitral é uma estrutura fibrosa complexa em formato de sela que faz parte do aparato valvar atrioventricular esquerdo, separando as câmaras esquerdas e servindo como local de inserção para os folhetos valvares. É formado pelas extensões laterais dos trígonos fibrosos esquerdo e direito, que têm a quantidade de tecido fibroso diminuída à medida que envolve o folheto posterior.¹
Figura 01: aparato valvar mitral.
Disponível em: http://echoboardsacademy.com/mitral-valve-anatomy-transesophageal-echo/
Essa estrutura essencial da anatomia cardíaca pode ser protagonista de um processo patológico que configura um grande desafio ao cirurgião cardiovascular: a calcificação do anel valvar mitral, conhecida como MAC (do inglês mitral annulus calcification). Tal condição é definida como o acúmulo de cálcio ao longo do anel, predominantemente na sua porção posterior, se estendendo ao folheto posterior e podendo também acometer a porção anterior. Demonstrando maior severidade ao afetar a porção anterior do anel, não só prejudicando a mobilidade dos folhetos mas também prejudicando a dinâmica da sístole ventricular, diminuindo a fração de ejeção. É justamente essa característica que auxilia na distinção entre calcificação do anel mitral e doença valvar reumática, já que essa última não poupa a comissura e o folheto anterior de forma habitual.²
Inicialmente, a calcificação do anel mitral era considerada um processo degenerativo de calcificação, com caráter mais passivo. As análises contemporâneas entendem a MAC como um processo de caráter ativo, iniciada por uma ruptura endotelial em determinados focos em decorrência do estresse mecânico (p.ex estenose aórtica ou hipertensão arterial sistêmica) na junção entre o anel valvar mitral e o miocárdio ventricular. Nos pontos de ruptura, há o acúmulo de lipídeos oxidados que iniciam a infiltração crônica de células inflamatórias, levando ao remodelamento da matriz extracelular e depósito de cálcio.³
Figura 2: Diagrama que descreve o ciclo vicioso da atividade de calcificação (identificado usando PET de fluoreto de sódio 18F) e macrocalcificação (detectada pela tomografia computadorizada) no anel mitral. Os fatores predisponentes para MAC são: obesidade, diabetes, triglicerídeos elevados, estresse hemodinâmico, doença renal crônica, metabolismo ósseo e mineral alterado, e inflamação exacerbada. D. Massera, J.R. Kizer and M.R. Dweck / Trends in Cardiovascular Medicine.
Embora os fatores de risco para MAC estejam melhores definidos atualmente, há precedentes antigos. Foi observada MAC em 6% de múmias egípcias com o coração intacto à análise em tomografia computadorizada durante o estudo Horus.⁴
Figura 03: calficação do anel mitral observada em uma múmia
Atherosclerosis in Ancient Egyptian Mummies: The Horus Study
A escolha terapêutica para pacientes com disfunção mitral grave em decorrência de MAC é um desafio já que, em caso de estenose, a valvuloplastia mitral percutânea com balão não tem bons resultados e a troca valvar cirúrgica apresenta elevada mortalidade, inclusive com uma potencial disjunção atrioventricular ainda na mesa cirúrgica, além de uma elevada morbidade, pelo risco de vazamento paraprotético em decorrência do anel valvar doente.
O risco cirúrgico já é primariamente aumentado pois os portadores de MAC geralmente são idosos e têm importantes comorbidades associadas, já colocando a indicação cirúrgica numa posição desafiadora, favorecendo o tratamento conservador.
Porém, no paciente com MAC que desenvolve valvopatia sintomática com manejo clínico difícil, o cirurgião se vê em um dilema em indicar a troca valvar cirúrgica para um paciente que, além das comorbidades e idade avançada, sofre com a adição de riscos inerentes ao procedimento nesse cenário, como o bloqueio atrioventricular total (até 25%), taxas de AVC peri-operatório até 5,5% maiores que o habitual, devido a manipulação do anel calcifcado e alta incidência de vazamentos paraprotéticos em decorrência da dificuldade de ancoragem da prótese no anel valvar doente.
A escolha terapêutica para o paciente com MAC depende da elegibilidade cirúrgica do paciente, anatomia da lesão e experiência do cirurgião. Deve-se, portanto, submeter o paciente à uma criteriosa análise para definir a terapêutica mais adequada.
Referências
- http://echoboardsacademy.com/mitral-valve-anatomy-transesophageal-echo/
- https://doi.org/10.1016/j.ahj.2012.05.014
- https://www.uptodate.com/contents/clinical-manifestations-and-diagnosis-of-mitral-annular-calcification/abstract-text/11223420/pubmed]
- https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1936878X11000660