De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 37 milhões de pessoas vivem com o HIV no mundo e, destes, 59% aderiram adequadamente à terapia antirretroviral (TARV)1. O advento da TARV transformou o HIV, que antes era uma infecção que inevitavelmente evoluiria para a síndrome da imunodeficiência humana (SIDA), em uma doença crônica. Estimativas apontam que em 2030 aproximadamente 73% das pessoas infectadas pelo HIV terão mais de 50 anos e quase 80% serão acometidas por doenças cardiovasculares. Nesse sentido, entende-se a importância de o cirurgião cardiovascular de agora e do futuro reconhecer a prevalência e importância dessa epidemia no cenário da doença coronariana.
Apesar dos fatores inerentes relacionados ao estilo de vida e à idade serem fatores importantes para o desenvolvimento da doença arterial coronariana (DAC), indivíduos convivendo com HIV possuem risco adicional para o surgimento da doença, especialmente relacionada à TARV, ao estado de inflamação crônica e ativação imune, que aceleram o processo aterosclerótico2. Além disso, a fisiopatologia do processo aterosclerótico em pacientes com HIV é diferente em indivíduos não infectados: as placas de ateroma nos pacientes infectados têm uma tendência maior a se romperem mais facilmente e serem menos calcificadas. Estima-se que 50% dos casos de infarto agudo do miocárdio (IAM) nos pacientes HIV+ sejam relacionados a um desbalanço entre oferta e demanda de oxigênio, em vez de serem causados pelo processo aterotrombótico per se. Ademais, a idade média de apresentação do IAM nesses pacientes ocorre cerca de uma década mais cedo que na população geral, principalmente em homens tabagistas e com níveis baixos de colesterol HDL.
Ao longo das últimas décadas desde o descobrimento do HIV, o perfil das doenças cardiovasculares que acometem esse grupo populacional mudou. Antes da instituição da TARV, a maioria dos pacientes era acometida por quadros de tamponamento cardíaco e cardiomiopatia dilatada. Com o advento da TARV, as complicações começaram a mudar. No tratamento de primeira geração, os pacientes passaram a apresentar complicações mais relacionadas ao perfil de doenças crônicas, como aterosclerose, IAM, cardiomiopatias, acidente vascular encefálico (AVE) e doença arterial periférica. Já na segunda geração de drogas, a mais utilizada atualmente, os pacientes passaram a exibir mais quadros de insuficiência cardíaca, arritmias, morte súbita cardíaca e DAC.
Figura 1. Visão geral da evolução do tratamento do HIV e das complicações cardiovasculares relacionadas.
Os principais fatores de risco relacionados ao surgimento de DAC nos pacientes com HIV são devidos ao próprio vírus, à interação do vírus com o sistema imune do hospedeiro e à TARV. Proteínas virais são capazes de induzir estados pró-inflamatórios e disfunção endotelial. A depleção dos linfócitos TCD4+ também foi associada ao maior risco de IAM e AVE, e mesmo em indivíduos com carga viral indetectável esses eventos ocorrem com mais frequência que nos não infectados. Além disso, as coinfecções associadas ao HIV, especialmente pelo citomegalovírus (CMV), são relacionadas à predisposição dos pacientes aos quadros de aterosclerose. Outros fatores incluem translocação da microbiota intestinal, inflamação e ativação crônica do sistema imune e uso de TARV, cujas drogas utilizadas no esquema elevam os níveis plasmáticos de colesterol.
Figura 2. Mecanismos fisiopatológicos da doença aterosclerótica em indivíduos HIV+.
É clara a relação entre infecção pelo HIV e doença cardiovascular. É papel do médico reconhecer essa associação, desmistificar os inúmeros estigmas associados ao paciente HIV+ e, acima de tudo, trabalhar de forma a prevenir danos e agravos e reduzir o impacto dessas complicações nos pacientes já acometidos.
REFERÊNCIAS
- World Health Organization [homepage na internet]. HIV: data and statistics [acesso em 20 jun. 2019]. Disponível em: https://www.who.int/hiv/data/en/
- Hsue PY, Waters DD. HIV infection and coronary heart disease: mechanisms and management. Nat Rev Cardiol [Internet]. 2019 [acesso em 20 jun. 2019]. Disponível em: http://www.nature.com/articles/s41569-019-0219-9
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