Varrendo a sujeira para debaixo do tapete: as controvérsias do EXCEL Trial

Em setembro de 2019, durante o Transcatheter Cardiovascular Therapeutics Meeting (TCT/2019), os resultados de acompanhamento após 5 anos do estudo clínico EXCEL foram apresentados, assim como publicados no New England Journal of Medicine (NEJM). O EXCEL trial foi um estudo conduzido pelo médico norte-americano Gregg W. Stone e patrocinado pela empresa Abbott Vascular.

O EXCEL trial

O estudo iniciou-se em 2010, com objetivo de avaliar qual a melhor técnica de revascularização do miocárdio em pacientes com SYNTAX Score baixo ou intermediário. Assim, uma amostra de 1905 pacientes foi recrutada e dividida em duas metades: a primeira foi submetida à revascularização pela técnica percutânea, com colocação de stent, enquanto a segunda metade foi submetida à cirurgia cardíaca convencional. Os desfechos analisados foram morte, acidente vascular encefálico e infarto do miocárdio.

Figura 1. Gregg W. Stone – Transcatheter Cardiovascular Therapeutics Meeting (TCT/2019) – São Francisco, Califórnia.

Os resultados do acompanhamento após 5 anos demonstraram que o risco de morte, acidente vascular encefálico ou infarto do miocárdio foi de 22% em pacientes revascularizados com stent e de 19,2% nos pacientes submetidos à cirurgia, com valor-p de 0,13; ou seja, sem significância estatística. Dessa forma, os investigadores concluíram que nessa população de pacientes, com lesão de tronco de artéria coronária esquerda e SYNTAX Score baixo ou intermediário, não haveria diferença entre os tratamentos percutâneo ou cirúrgico.

A controvérsia do estudo

Uma semana após a divulgação dos resultados, o cirurgião cardiovascular David Taggart causou polêmica no 33º Congresso Europeu da Sociedade Cardiotorácica, afirmando que houve manipulação de dados durante a condução do estudo para que a técnica percutânea fosse favorecida.

David Taggart é professor da Universidade de Oxford e atualmente uma referência mundial no estudo das doenças coronarianas, participando como autor principal em mais de 250 artigos publicados e conduzindo o maior estudo clínico mundial da cirurgia cardíaca em tempo de acompanhamento. O cirurgião também era um dos autores do estudo EXCEL, sendo Oxford o segundo centro com maior número de pacientes incluídos no estudo.

Figura 2. Apresentação de David Taggart – 33º Congresso Europeu da Sociedade Cardiotorácica – Lisboa.

Taggart alegou que a manipulação ocorreu pela mudança da definição de infarto do miocárdio durante a fase final de recrutamento dos pacientes (e não no começo do estudo, como seria o correto). Para ele, a mudança ocorreu com o objetivo de tentar provar que não haveria diferença entre os as técnicas de revascularização (percutânea vs. cirúrgica), beneficiando claramente os resultados da técnica percutânea.

Definição universal de infarto

O cirurgião afirmou que a definição publicada no NEJM não está alinhada com a definição universal de infarto. A definição universal define o infarto de acordo com a fisiopatologia do evento, podendo ocorrer de forma espontânea ou relacionada aos procedimentos percutâneos ou cirúrgicos (infarto periprocedimento).

No estudo, os pesquisadores consideraram como infarto periprocedimento uma elevação nos níveis de CK-MB em 10 vezes acima do limite da normalidade ou elevação de 5 vezes + evidência de isquemia no eletrocardiograma. Os parâmetros de CK-MB foram os mesmos para ambos os procedimentos (cirurgia ou angioplastia). É aqui que se fundamenta a crítica de Taggart.

Primeiro, a definição universal de infarto considera como infarto periprocedimento a elevação de troponina, e não a de CK-MB. Além disso, considera-se aumento em 5 vezes durante a angioplastia e 10 vezes durante a cirurgia, utilizando um limite superior para pacientes cirúrgicos com o objetivo de diferenciar infarto do miocárdio de injúria miocárdica. O estudo considerou o limite de 10 vezes para ambos os procedimentos. Caso a definição universal de infarto tivesse sido utilizada, obviamente haveria mais infartos no grupo submetido à angioplastia.

Repercussão mundial

O assunto recebeu repercussão mundial após a BBC lançar uma reportagem, baseada em uma série de entrevistas, divulgando os dados não publicados do estudo EXCEL que de fato utilizavam a definição universal de infarto.

Os dados não publicados demonstravam que os pacientes tratados com stent tiveram aproximadamente 80% mais infarto do miocárdio quando comparados aos submetidos à cirurgia cardíaca convencional. De acordo com Taggart, houve um claro excesso de morte no grupo submetido à técnica percutânea. Na entrevista, o cirurgião afirmou que, para cada 100 mortes que ocorreriam no grupo cirúrgico, ocorreriam 135 mortes no grupo percutâneo, mostrando uma grande diferença.

Por fim, David Taggart ainda comentou sobre a presença da indústria no estudo EXCEL, apontando que cerca de 33% dos coautores do estudo receberam pagamentos da principal patrocinadora do estudo. A editora-chefe do JAMA Internal Medicine, Rita Redberg, também expressou sua preocupação com o envolvimento da indústria no estudo, ressaltando a importância de os revisores notarem a questão ética, principalmente em estudos que envolvam causas de mortalidade.

Demanda das sociedades internacionais

O secretário-geral da Sociedade Europeia de Cirurgia Cardiotorácica (EACTS), Domenico Pagano, divulgou uma nota em que o conselho da sociedade retirou o apoio para os guidelines europeus de revascularização miocárdica, visto que boa parte da diretriz foi montada tendo como base os resultados do estudo.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular divulgou uma nota (leia aqui) solicitando que a indicação de tratamento das lesões de tronco de coronária esquerda seja alterada nas diretrizes europeias até que se tenha o completo esclarecimento dos fatos, uma vez que o comitê organizador da diretriz europeia para a revascularização do miocárdio não estava a par dos resultados não publicados.

David Taggart retirou seu nome da lista de autores do estudo. De acordo com o cirurgião, deixar seu nome na publicação significaria um apoio à sua conclusão e jamais poderia fazer isso, pois a taxa de mortalidade foi significativamente menor no grupo cirúrgico; assim, apoiar que não houve diferença de desfecho entre os procedimentos poderia ser perigoso para os pacientes.

A grande questão

Esses fatos levantam uma grande questão: de quem é a responsabilidade em garantir que todas as evidências de um estudo clínico sejam divulgadas para que os pacientes recebam o melhor tratamento possível? Da empresa patrocinadora? Da revista da publicação? Do comitê organizador de guidelines? Afinal, precisamos confiar nos médicos, e os médicos precisam confiar nos estudos. A ciência não pode ser manipulada para atender objetivos específicos.

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