Cirurgia cardíaca em pacientes oncológicos: perspectivas

O perfil dos pacientes submetidos a cirurgia cardíaca tem mudado progressivamente: o aumento na expectativa de vida favorece que a população mais idosa seja cada vez mais submetida a procedimentos cardiovasculares. Associado a isso, o risco de comorbidades prévias ou concomitantes à cirurgia também é elevado, a exemplo das neoplasias. Estima-se que de 2 a 4% dos pacientes que necessitam de cirurgia cardíaca possuem histórico pessoal de câncer e 3,5 a 7% possuem doença ativa no momento da cirurgia1. Nesse sentido, a equipe multidisciplinar envolvida na realização do procedimento deve estar atenta tanto às complicações relacionadas ao ato cirúrgico em si, que podem ter impacto mais significativo nessa população, quanto ao tratamento oncológico, seja por radioterapia, seja por quimioterapia.

No rastreamento pré-operatório dos pacientes, o uso de medicações quimioterápicas com potencial cardiotóxico deve ser cuidadosamente investigado, uma vez que podem precipitar alterações agudas da função miocárdica no contexto cirúrgico, especialmente em indivíduos com risco cardiovascular aumentado e doença coronariana suspeita ou confirmada (Figura 1). Outro importante aspecto a ser observado é o estado trombogênico que os pacientes oncológicos se encontram, o que aumenta o risco de eventos trombóticos agudos, principalmente a embolia pulmonar, em especial nos pacientes portadores de neoplasias linfo-hematopoiéticas. Além disso, o uso prévio de radioterapia tem implicações diretas no ato operatório. A incisão esternal deve ser feita com cuidado, uma vez que as estruturas adjacentes podem estar aderidas em decorrência da fibrose, levando a lesões de partes nobres e aumentando os índices de sangramento de difícil controle no campo. Os exames de imagem pré-operatórios podem evidenciar calcificações arteriais e, em casos de acometimento das artérias torácicas internas (Figura 2), o plano cirúrgico de revascularização deve levar em conta outros enxertos, bem como a necessidade de canulação em sítios extra-aórticos em caso de calcificação desse vaso. A função pulmonar também deve ser avaliada cuidadosamente, já que os pulmões são sítios muito suscetíveis a alterações fibróticas pós-radioterapia2.

Fig. 1. Principais efeitos adversos do tratamento do câncer no coração e que podem constituir achados de imagem.

Fonte: Jordan et al.2.

Figura 2. Tomografia computadorizada de um paciente previamente tratado com radioterapia torácica há 8 anos para linfoma de Hodgkin com programação de revascularização cirúrgica do miocárdio. (A) e (B): artérias torácicas internas, patente à esquerda e ocluída à direita, como indicado pelas setas. (C): são observadas adesões entre a parede livre do ventrículo direito e o pericárdio.

Fonte: Lorusso et al.1.

Nos pacientes com histórico de neoplasia e tratados previamente com quimioterapia ou radioterapia, a investigação deve estar relacionada ao tipo de intervenção que será realizada, como calcificação das artérias torácicas internas e da aorta ou função miocárdica comprometida. Já naqueles que possuem doença ativa no momento da cirurgia, os dados ainda são controversos. De modo geral, recomenda-se o procedimento em estágio único (ou seja, ressecção do tumor em mesmo tempo cirúrgico que a cirurgia cardíaca) das neoplasias em estágios mais iniciais e confinadas a uma única região, como lobectomia pulmonar, gastrectomia parcial e colectomia. Em pacientes que requerem grandes ressecções e nos quais o risco de complicações (principalmente hemorrágicas) está aumentado, a cirurgia deve ser realizada em dois momentos, com prioridade ao procedimento cardíaco1.

Além disso, outra preocupação é o uso da circulação extracorpórea (CEC) nos pacientes oncológicos: o estado pró-inflamatório que se segue após a CEC e a supressão de citocinas e células do sistema imune poderiam levar, teoricamente, a uma progressão da neoplasia. Um estudo italiano3 analisou retrospectivamente 241 pacientes com diagnóstico, prévio ou na internação, de neoplasia, em sua maior parte tumores sólidos e em estágios iniciais. O EuroSCORE II médio era de 3,8. A mortalidade por todas as causas no período intra-hospitalar foi de 5,8%, com 1,67% de mortes relacionadas à malignidade. A sobrevida em 10 anos foi de 65% e a ausência de morte relacionada à doença cardíaca foi de 92%. Já o desfecho de ausência de morte em decorrência do câncer foi de 90% nos pacientes operados em estágios iniciais e com tumores sólidos. A progressão da neoplasia foi observada em 29 pacientes em um período de seguimento de 18 meses. Os autores concluíram que a cirurgia cardíaca foi um procedimento seguro e a presença associada da neoplasia não aumentou a mortalidade intra-hospitalar. Os melhores desfechos foram verificados em pacientes em estágios iniciais e com neoplasias sólidas. Além disso, observaram que o uso da CEC não se correlacionou com piora do câncer. A principal limitação foi o desenho retrospectivo e observacional do estudo. O grupo também não estudou o painel imunológico dos pacientes.

Um trabalho brasileiro4 investigou a mortalidade de origem cardíaca e não cardíaca em pacientes submetidos à revascularização do miocárdio (RVM) com CEC e em intervenções não cirúrgicas. Os pacientes do grupo RVM, quando comparados aos do grupo não cirúrgico, tiveram incidência menor de morte de origem cardíaca, mas uma incidência maior de mortalidade de outra etiologia, principalmente relacionada ao câncer. Outros estudos, porém, não demonstraram perfil semelhante, com resultados ainda não totalmente claros sobre o efeito da CEC nesses pacientes1.

De modo geral, pacientes com história de malignidade não apresentam pior mortalidade no pós-operatório recente, mas têm um risco aumentado de morbidade5. Além disso, podem ter uma necessidade maior de transfusão sanguínea e maior tendência a fibrilação atrial pós-operatória, acidente vascular encefálico, pneumonia, demanda de reintubação e sepse. As neoplasias hematológicas se correlacionam com piores desfechos se comparadas às formas sólidas. Já a mortalidade tardia é decorrente, em grande parte, da progressão do câncer. Nesse sentido, a programação de uma cirurgia cardíaca em pacientes oncológicos deve ser cuidadosamente discutida, em termos do real impacto do procedimento sobre a doença de base e o risco de complicações.

Referências

  • Lorusso R, Vizzardi E, Johnson DM, Mariscalco G, Sciatti E, Maessen J, Gelsomino S. Cardiac surgery in adult patients with remitted or active malignancies: a review of preoperative screening, surgical management and short- and long-term postoperative results. Eur J Cardiothorac Surg. 2018;54(1):10-18. doi: 10.1093/ejcts/ezy019
  • Jordan JH, Todd RM, Vasu S, Hundley WG. Cardiovascular magnetic resonance in the oncology patient. JACC Cardiovasc Imaging. 2018;11(8):1150-1172. doi: 10.1016/j.jcmg.2018.06.004
  • Nardi P, Pellegrino A, Pugliese M, Bovio E, Chiariello L, Ruvolo G. Cardiac surgery with extracorporeal circulation and concomitant malignancy. J Cardiovasc Med. 2016;17(2):152-159. doi: 10.2459/JCM.0000000000000319
  • Vieira RD, Pereira AC, Lima EG, Garzillo CL, Rezende PC, Favarato D, et al. Cancer-related deaths among different treatment options in chronic coronary artery disease: results of a 6-year follow-up of the MASS II study. Coron Artery Dis. 2012;23(2):79-84. doi: 10.1097/MCA.0b013e32834f112a
  • Chan J, Rosenfeldt F, Chaudhuri K, Marasco S. Cardiac surgery in patients with a history of malignancy: increased complication rate but similar mortality. Heart Lung Circ. 2012;21(5):255-259. doi: 10.1016/j.hlc.2012.02.004

 

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