Momento dramático do futebol mundial: entenda a morte súbita cardíaca

Em 12 de junho de 2021, o mundo parou para assistir o segundo dia da Eurocopa, um dos maiores eventos esportivos do mundo, que mobilizou milhares de pessoas e sintonizou milhões em suas telas, a fim de assistir o que é um marco para o início do retorno à vida normal, pós pandemia da COVID-19. O jogo Dinamarca versus Finlândia começou de maneira regular, com a qualidade que se esperaria de duas seleções referência no futebol mundial, grandes atletas e torcidas intensas gritando por seus jogadores, esperando ansiosamente o momento em que a bola tocaria na rede.

Porém, nos minutos finais do primeiro tempo, um momento chocante: Christian Eriksen, de 29 anos, astro do Inter de Milão e referência para o seu time, desaba ao caminhar para a cobrança de um arremesso lateral. Tudo a partir desse momento parece correr em câmera lenta. Os jogadores clamam por assistência médica, o estádio fica em silêncio de ambos os lados. Não mais polarizado, mas sim unido em uma mesma torcida – a vida humana.

Figura 1: Jogadores da Dinamarca formaram uma barreira ao redor de Christian Eriksen, enquanto ele recebia atendimento médico de emergência¹

Esse foi um ocorrido intenso, assustador e raro, mas não único na história do futebol mundial. Evento semelhante, mas não com o mesmo final feliz, ocorreu, por exemplo, em 2003, quando Marc-Vivien Foé morreu durante um jogo entre Camarões e Colômbia, devido a uma cardiomiopatia hipertrófica e, no ano seguinte, um jogador brasileiro, Serginho do São Caetano, sofreu uma parada cardiorrespiratória em jogo contra o São Paulo e faleceu em campo.² O que ocorreu com Eriksen, e tantos outros antes dele, foi uma morte súbita cardíaca (MSC) que nesse caso, felizmente, conseguiu ser revertida. Para uma morte ser considerada MSC, três critérios devem ser preenchidos:

  • Morte inesperada em resultado de causas naturais;
  • Confirmação pós-morte de causa primária no coração ou grandes vasos;
  • Eventos que ocorreram em até 1h desde o início dos sintomas de colapso.

Em pesquisa no ano de 2017, apenas 20 casos foram relatados preenchendo todos os critérios para MSC, resultando em uma incidência mundial de 1,04/100.000 pessoas ao ano, com média de idade entre 19 e 29 anos. Além disso, esse mesmo estudo registrou uma incidência nula entre jogadores que se submeteram a rastreio pré-participação, o que inclui o jogador da seleção dinamarquesa, uma vez que, apesar de ter sofrido um mal súbito cardíaco, ele não se concretizou em MSC.³

De toda forma, é fato que a morte súbita pode ser o primeiro e último sintoma de um problema cardíaco, e que, no contexto de um esporte exigente como o futebol, no qual os atletas correm cerca de 10km em intensidade média alta e com vários surtos explosivos, uma triagem é essencial para a prevenção de eventos adversos.

A implementação de fluxos para prevenção e tratamento da MSC inclui estratégias de equipe e individuais para o manejo de atletas, associadas a campanhas de saúde pública, como o treinamento universal (de profissionais de saúde e leigos) em ressuscitação cardiopulmonar e a disponibilização de desfibriladores externos automáticos (DEAs) em ambientes públicos. Além disso, a avaliação e o monitoramento para identificar a presença de cardiopatias silenciosas e arritmias podem reduzir o risco de MSC relacionada ao esforço físico. Eles consistem em: anamnese e exame físico direcionados aos sinais e sintomas cardiovasculares e história familiar de morte cardíaca prematura, arritmias familiares e doença arterial coronariana. A avaliação dos atletas deve incluir outros exames diagnósticos, como o ECG de 12 derivações para a investigação de arritmias e isquemia e, quando apropriado, ECG de repouso e estresse, teste de estresse farmacológico e exames de imagem, como ecocardiografia, ressonância magnética e cateterização.⁴ Para saber mais sobre os ritmos possivelmente indicadores de MSC em atletas, leia o texto de 2017 do blog BJCVS: https://blog.bjcvs.org/single-post/2017/09/21/como-reconhecer-ritmos-eletrocardiograficos-possivelmente-indicadores-de-morte-subita-em-atletas/.

Figura 2: Desfibrilador externo automático (DEA)⁵

Cabe notar, ainda, que há algumas divergências entre os sistemas de triagem. A experiência italiana, por exemplo, forneceu evidências de que a triagem pré-participação em atletas competitivos com ECG de 12 derivações, história e exame físico é eficaz na identificação de doenças cardiovasculares potencialmente letais.⁶ Já nos Estados Unidos, o American College of Cardiology AHA recomenda um programa de triagem pré-participação limitado ao uso de questionários específicos e exame clínico.⁷

De toda forma, é essencial lembrar as principais causas de MSC em atletas. Nos mais jovens, cardiomiopatia hipertrófica, hipertrofia ventricular esquerda idiopática, anomalias coronárias, miocardite, Síndrome de Wolff-Parkinson-White, Síndrome de Brugada, doença cardíaca valvular ou canalopatias iônicas formam um substrato que predispõe ao evento cardíaco, enquanto que atletas com mais de 35 anos de idade apresentam maiores registros de estenose coronária.⁸

Em todos os casos, um atendimento primário rápido e eficaz salva vidas, como já foi mencionado. Contudo, o que fazer após a estabilização desse atleta?

No caso de Christian Eriksen, 5 dias após o mal súbito em campo, divulgou-se em nota que o atleta seria submetido a uma cirurgia para colocação de desfibrilador cardíaco implantável (DCI) como medida de profilaxia secundária, enquanto novos exames são realizados para investigação da patologia subjacente desencadeadora do evento. O DCI é um dispositivo de última geração que trata arritmias de origem ventricular e se tornou a primeira linha de defesa em pacientes com alto risco de MSC e mostrou benefício consistente em sobreviventes de parada cardíaca. O DCI  possui a capacidade de reconhecer o ritmo cardíaco anormal rápido e fornecer tratamento imediato. Isso pode ser feito na forma de estimulação de overdrive ou terapia de choque, sincronizada ou não, dependendo do ritmo reconhecido e do algoritmo de detecção pré-programado. Ele vem em três sistemas: um único eletrodo ou dispositivo de câmara única, um eletrodo duplo ou um dispositivo de câmara dupla e um que é acoplado à terapia de ressincronização cardíaca, um dispositivo biventricular com eletrodos no átrio direito, ventrículo direito e seio coronário.⁹ Recentemente um quarto sistema tem sido implantado o ICD subcutâneo, sem a necessidade de implante de eletrodos intravasculares (Figura 3). Para saber mais sobre outras formas de estimulação cardíaca artificial, leia o texto do blog BJCVS: https://blog.bjcvs.org/single-post/2021/06/08/a-sinfonia-da-vida-entenda-o-marca-passo-cardiaco/

Figura 3: Comparação entre DCI subcutâneo e transvenoso. Enquanto o primeiro é colocado em posição lateral e possui um eletrodo subcutâneo, o segundo é implantado em uma posição frontal e possui eletrodos transvenosos que chegam ao coração.¹⁰

Por fim, sabemos que Eriksen ainda tem um longo caminho a percorrer até o restabelecimento da vida normal. O DCI é a medida mais eficaz para prevenir a morte cardíaca súbita. No entanto, os pacientes frequentemente apresentam problemas como declínio da tolerância ao exercício, ansiedade e depressão após a operação, e requerem reabilitação cardíaca. Portanto, o DCI é uma medida de prevenção secundária eficaz para pacientes com doenças cardiovasculares, que pode melhorar a qualidade de vida, mas deve ser bem indicado.¹¹

Figura 4: Christian Eriksen agradece pelas mensagens de apoio e deixa recado para o seu time. Fonte: Instagram

REFERÊNCIAS

¹ The Straits Times. Denmark’s Christian Eriksen given cardiac massage in Euro 2020 game, able to speak before going to hospital. 2021. Disponível em: https://www.straitstimes.com/sport/football/football-denmarks-eriksen-had-cardiac-massage-on-pitch-was-able-to-speak-before-going. Acesso em: 17 jun. 2021.

² Gazeta Esportiva. Morte súbita no futebol: relembre casos recentes. Disponível em: https://www.gazetaesportiva.com/fotos/fotos-destaque/morte-subita-no-futebol-relembre-casos-recentes/#foto=4. Acesso em: 17 jun. 2021.

³ Santos-Lozano, A. et al. Morte Súbita Cardíaca nos Jogadores de Futebol Profissional. Journal Of The American College Of Cardiology. Valladolid, p. 10-11. 12 set. 2017.

⁴ Vancini R.L. et al. Prevention of Sudden Death Related to Sport: The Science of Basic Life Support-from Theory to Practice. J Clin Med. 2019;8(4):556. Published 2019 Apr 24. doi:10.3390/jcm8040556

⁵ SaúdeShop. Desfibrilador Externo Automático (DEA). Disponível em: https://www.saudeshop.com.br/equipamentos-medicos/desfibrilador-externo-automatico-dea-life-400-futura-cmos-drake. Acesso em: 17 jun. 2021.

⁶ Hevia A.C. et al. ECG como parte do programa de triagem pré-participação: Um antigo e ainda presente dilema internacional. Br. J. Sports Med2011; 45:776–779. doi: 10.1136/bjsm.2009.063958

⁷ Chatard J.C, Mujika I., Goiriena J.J, Carré F. Triagem de jovens atletas para prevenção de morte cardíaca súbita: recomendações práticas para médicos do esporte. Scand. J. Med. Sci. Esportes2016; 26 : 362–374. doi: 10.1111 / sms.12502

⁸ Vora A, Burkule N, Contractor A, Bhargava K. Prevention of sudden cardiac death in athletes, sportspersons and marathoners in India. Indian Heart J. 2018;70(1):137-145. doi:10.1016/j.ihj.2017.12.004

⁹ Iqbal A.M, Butt N, Jamal S.F. Automatic Internal Cardiac Defibrillator. In: StatPearls. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; June 3, 2020.

¹⁰ Lewis, G.; Gold, M. Clinical experience with subcutaneous implantable cardioverter-defibrillators. Nat Rev Cardiol 12, 398–405 (2015). https://doi.org/10.1038/nrcardio.2015.56

¹¹ Liu J, Li X, Xie W. [Research progress on cardiac rehabilitation in patients with implanted cardiac defibrillator]. Journal of biomedical engineering. 2020;37(4):736-740. doi:10.7507/1001-5515.202001002

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