Quando o assunto é residência médica, o jovem estudante, ao concluir o curso de medicina, naturalmente se defronta com sentimentos de incerteza, dúvidas e indagações sobre o futuro. Quando o assunto é residência médica no exterior, as incertezas aumentam ainda mais. O BJCVS Blog já publicou um post explicando as alternativas norte-americanas para a residência médica; você pode acessá-lo aqui. Mas, e depois da prova? Será que o sacrifício compensa? Vale a pena encarar a distância familiar? Como é a vida de um brasileiro que exerce a medicina fora do país? Existe algum segredo para o sucesso?
Buscando sanar essas e outras dúvidas, e contribuir para o processo de decisão de muitos de nossos leitores, o blog entrevistou um médico brasileiro que enfrentou o processo e realizou a residência integrada em cirurgia cardiovascular no Texas Heart Institute, um dos maiores centros cardiológicos do mundo. O profissional é o Dr. Fernando Bermudez Kubrusly, médico formado pela Universidade Federal do Paraná (2010) e com residência médica em Cardiothoracic and Vascular Surgery pela University of Texas Health Science Center at Houston (2015). Atualmente, o Dr. Kubrusly atua como cirurgião cardíaco na cidade de Curitiba e possui linhas de pesquisa na área de cardiopatias estruturais e valvares.
Dr. Fernando Bermudez Kubrusly / Texas Heart Institute.
Leia a seguir a entrevista exclusiva:
BJCVS Blog: Dr. Kubrusly, obrigado por nos receber. De onde surgiu a ideia de realizar a residência nos Estados Unidos?
Dr. Kubrusly: Tudo começou quando realizei um estágio de férias em Miami durante o terceiro ano da faculdade de medicina. Acabei gostando da metodologia de ensino e principalmente da logística de funcionamento dos hospitais. A partir daí, comecei a fazer planos para realizar meu treinamento nos Estados Unidos.
BJCVS Blog: Como foi o processo de preparação durante a faculdade?
Dr. Kubrusly: Bom, o processo consiste em três fases. Para a primeira fase (Step 1), me preparei por mais ou menos durante um ano e meio para realizar a prova. A vantagem é que essa prova pode ser realizada durante a faculdade a partir do momento em que você passa pelo ciclo básico. Depois de aprovado na primeira fase, estudei mais um ano para o Step 2 e o Step 2 CK, realizando-os ao final da faculdade. A maior parte das provas pode ser realizada durante a faculdade, mas eventualmente alguma coisa pode acabar ficando para depois. Se pudesse, eu teria começado a estudar desde o primeiro ano da faculdade se já soubesse que queria ir para fora.
BJCVS Blog: Como foi o processo de entrevistas após os steps?
Dr. Kubrusly: Uma vez tendo sido aprovado nas provas, é preciso ser bem realista com o que você está almejando. Dentro da limitação do seu score, você tem que procurar programas nos quais você possa competir de fato. As especialidades cirúrgicas exigem score alto, pois a concorrência é muito alta. Dito isso, você escolhe os hospitais e aplica para as entrevistas. Eventualmente você pode ser chamado ou não. No meu caso, já fui focado no programa que eu queria. Fiz entrevistas em uns 20 serviços, mas já estava focado no programa que eu queria em Houston, onde felizmente dei o match.
BJCVS Blog: Como era sua rotina diária no hospital?
Dr. Kubrusly: No programa americano (integrado), você roda em vários serviços antes de começar a cirurgia cardíaca de fato. Então eu rodei pela hemodinâmica, unidade de terapia intensiva, cirurgia geral, clínica e somente depois entrei efetivamente no ambiente da cirurgia cardiovascular. Depois, eu tinha os dias de ambulatório e os dias de centro cirúrgico, além dos plantões obrigatórios na escala. As cirurgias habitualmente começavam cedo e o horário de término dependia do volume de cirurgias do dia.
BJCVS Blog: E durante os finais de semana? Você tinha tempo para fazer coisas fora da residência?
Dr. Kubrusly: A maioria dos meus finais de semana eram ocupados com o trabalho. Ou eu estava na escala de alguma cirurgia/plantão ou estava envolvido na área de pesquisa, que lá é muito forte. No final, sempre sobrava tempo para algo relacionado ao lazer. O americano é muito metódico nesse quesito, então o lazer não ocupa muito espaço da vida dele.
BJCVS Blog: Como foi ser um médico brasileiro atuando em outro país?
Dr. Kubrusly: O sistema americano é muito internacional. Lá existem muitos médicos estrangeiros. Não há nenhum serviço de grande porte nos EUA que não tenha uma porcentagem grande de imigrantes, porque é um sistema muito meritocrático. Então, isso acaba não te atrapalhando, porque seu chefe é de fora e seu colega de residência também. O médico brasileiro é muito respeitado nos Estados Unidos em razão de sua versatilidade. Como aqui temos contato com o paciente desde cedo, em estágios e procedimentos, ao final da faculdade somos mais versáteis. Isso ajuda bastante.
Vista aérea do Texas Heart Institute (Fonte: University of Texas Health Science Center at Houston)
BJCVS Blog: Foi possível acompanhar o ritmo dos estudantes norte-americanos e outros estrangeiros com a formação médica que temos no Brasil?
Dr. Kubrusly: Nos Estados Unidos, o ambiente hospitalar é bastante competitivo. Muitas pessoas estão lá somente porque é a única chance de obter sucesso profissional, pois o respectivo país de origem muitas vezes não fornece suporte. Então, são pessoas totalmente engajadas com o sucesso profissional e bastante competitivas, mas é uma competição saudável porque você acaba crescendo junto. Fiz vários amigos lá, e conheci muita gente de outros países. A única área em que às vezes pecamos são nas cadeiras básicas, a exemplo de bioquímica, anatomia, patologia, embriologia.
BJCVS Blog: A remuneração durante a residência permitia que os custos pessoais fossem arcados sobriamente?
Dr. Kubrusly: Tranquilamente. O salário de residente nos Estados Unidos é progressivo, ou seja, aumenta conforme os anos. Desde o início o salário da residência já é suficiente para as despesas de moradia, transporte, alimentação e lazer. Isso é importante porque nos Estados Unidos não podemos fazer plantões durante a residência, pois a licença médica é vinculada ao ensino. O custo de vida, obviamente, dependerá da cidade em que você está.
BJCVS Blog: Qual foi sua maior dificuldade durante os cinco anos de residência?
Dr Kubrusly: A maior dificuldade foi estar em um país desconhecido, onde a maior parte das pessoas não sabia quem eu era e de onde vim, qual foi minha faculdade, quem foram meus orientadores e professores. Então basicamente você tem que merecer e demonstrar seu valor lá fora. Essa foi uma dificuldade importante.
Dr. Fernando Bermudez Kubrusly / Texas Heart Institute.
BJCVS Blog: Foi possível se envolver com pesquisa?
Dr. Kubrusly: Sim. Nos Estados Unidos existe muita verba disponível para essa área, é impressionante. Desde o primeiro ano já estava envolvido com pesquisas, e no segundo ano já consegui cargos como o de investigador principal em alguns projetos importantes.
BJCVS Blog: Hoje, muitas pessoas da área da saúde sonham em atuar nos Estados Unidos. Houve algum motivo que o fez retornar para o Brasil?
Dr. Kubrusly: Eu tive interesse em ficar lá uma época. Mas a grande diferença que nós podemos fazer hoje é unificar as melhores técnicas e melhores mentes no Brasil para a especialidade se sustentar e crescer como merece. Então, nesse sentido, o Brasil é muito receptivo e tem muito espaço para crescer ainda. Os cirurgiões brasileiros são excelentes, e hoje temos a chance de tratar o paciente da melhor forma possível, com um leque de técnicas diferenciadas, manejos diferenciados e avaliação personalizada para cada paciente. Nesse sentido, eu achei melhor voltar para o Brasil para ajudar a expandir o leque de abordagem que temos para a cirurgia cardíaca e para os pacientes.
BJCVS Blog: Que conselho você daria para os acadêmicos ou recém-formados que desejam fazer sua especialização no exterior?
Dr. Kubrusly: A primeira pergunta é se o interesse é ir para lá com a possibilidade de ficar efetivamente, ou ir com a certeza de volta para o Brasil, para diferenciação entre residência e fellowship; isso fará a diferença na velocidade e intensidade de preparo. Também é importante pesar as condições e os custos das provas e entrevistas nos Estados Unidos. O principal, porém, é não ter pressa para realizar os steps. O maior desastre durante o processo é se precipitar, fazer a prova sem o preparo adequado e não tirar a nota almejada, principalmente na área de cirurgia cardiovascular. Não pode haver falha nesse momento, pois uma nota baixa elimina você de 90% dos programas.
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