REABILITAÇÃO CARDÍACA PÓS TRANSPLANTE: COMO FUNCIONA?

Em 2020, dentre as 1681 pessoas que precisavam de transplante cardíaco, foram realizados 307 transplantes entre as 37 equipes por todo o país.¹ Apesar dos avanços significativos nas técnicas cirúrgicas e desenvolvimento de medicamentos  imunossupressores mais eficientes, esse número é menor que no ano anterior e reflete uma mudança de contexto com a chegada da pandemia da COVID-19.² Contudo, mesmo com esse difícil cenário modificando a realidade dos procedimentos, os receptores que alcançam o sonho do novo coração são capazes de retornar ao trabalho e ter uma vida normal, com mínimos sintomas ou mesmo assintomáticos. A taxa de sobrevida no 1º ano é estimada em 90% e em 5 anos em cerca de 70%.³

“Transforme as pedras que você tropeça nas pedras de sua escada”, uma frase de Sócrates com milhares de aplicações e um mesmo significado. A vida no pós-transplante cardíaco é recheada de desafios, mas também de muitos momentos propícios à superação. Após “uma grande pedra no caminho”, uma cardiomiopatia em estágio terminal, finalmente se enxergou uma centelha de esperança. Mas e agora, o que vem depois dessa conquista e como viver com um novo coração?

O primeiro obstáculo para o retorno à vida normal de um transplantado perpassa pela reabilitação cardíaca (RC), designada como a soma das atividades necessárias para influenciar melhores condições físicas, mentais e sociais, de maneira que os pacientes possam, através de seus próprios esforços, preservar ou reassumir um papel normal dentro da comunidade, restabelecendo ao máximo o nível de atividades, compatível com a capacidade funcional do novo coração.² O efeito protetor do exercício contra aterosclerose, por exemplo, já está bastante estabelecido e, conforme o I Consenso Brasileiro de Reabilitação Cardíaca, os programas de RC para transplantados estão indicados como forma de prevenção secundária.⁴

Imagem 1: Analogia à reabilitação cardíaca⁵

A história da reabilitação cardíaca no Brasil se inicia em 1968, quando a Revista Hospital relatou a atividade do Serviço de Reabilitação Cardiovascular do Instituto Estadual de Cardiologia Aloysio de Castro (RJ). No ano de 1972 implantou-se a Seção de Reabilitação Cardiovascular do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo (SP), e os primeiros resultados foram comunicados no XXIX Congresso Brasileiro de Cardiologia, em Fortaleza (1973). Nessa mesma época, constituiu-se o programa de treinamento físico da Clínica Médica do Hospital das Clínicas da USP, em associação com a Escola de Educação Física da universidade. Logo, desde os achados iniciais da década de 60, cresce a evidência do baixo risco do exercício, quando associado a componentes isométricos de baixa intensidade e ao treinamento aeróbio supervisionado, para o aumento da tolerância ao esforço em coronariopatas.⁶

Em função da denervação do coração transplantado, existe uma perda no controle direto do sistema nervoso autônomo, que resulta em alterações hemodinâmicas, respiratórias e metabólicas, tanto em repouso quanto durante o exercício. Já foi possível demonstrar o início do processo de re-inervação a partir de seis meses após a cirurgia, e também a continuidade durante dois anos, porém ainda não se pode afirmar que o exercício seja capaz de acelerar estes acontecimentos.⁷

Além disso, dentre as complicações pós-transplante cardíaco, estão: rejeições, infecções, disfunção renal e miocárdica e doença arterial coronariana. Dentre estes, destaca-se a última, que costuma se manifestar mais rapidamente no primeiro ano pós-transplante e mostra-se resistente às medicações.³ O treinamento físico é conhecido como terapêutica de excelência para o manejo dessas doenças crônicas, sendo eficaz na otimização do controle autonômico. Assim, o exercício no pós-transplante é fundamental para a reabilitação do indivíduo, tendo entre os seus benefícios o aumento da força muscular, a melhora do ritmo cardíaco e da resposta pulmonar via mecanismo de Frank-Starling, aumento da capacidade física e tolerância para atividades diárias e a redução da pressão arterial em repouso, além do aumento da autoconfiança e do bem-estar.⁸

Imagem 2: Mecanismo de Frank-Starling refletindo o desempenho cardíaco em pessoas normais e com insuficiência cardíaca, em função da pré-carga. Pacientes transplantados conseguem atingir um nível quase normal nesta curva, a depender de uma adequada RC.⁹

A chave para conseguir resultados benéficos é o planejamento e implementação corretos de um programa de exercício em termos de intensidade, volume e frequência. O programa de RC se divide em três fases¹⁰:

  1. Realizada ainda durante a hospitalização do paciente após a cirurgia, na qual se inicia a mobilização para evitar atrofia muscular.
  2. Realiza-se duas a três semanas após a alta hospitalar e mantém-se durante 8 a 12 semanas, na qual a fisioterapia cardiorrespiratória, em conjunto com outras áreas de saúde, prepara um protocolo de exercício composto por fase de aquecimento, exercícios aeróbios, exercícios de fortalecimento dos membros superiores e inferiores e flexibilidade. A intensidade de cada grupo de exercícios resulta dos resultados da monitorização e exames constantes aos quais o paciente é submetido.
  3. Pertence à fase de manutenção com exercício físico, 6 a 12 meses após o início da fase 2. Tem como objetivo a manutenção da atividade física e prevenir complicações futuras.
  4. Programa de longo prazo, de duração indefinida, geralmente com exercício não-supervisionado e reavaliações médicas periódicas no máximo anuais.

Ademais, após ajuste para variáveis ​​de idade, sexo, diabetes, índice de massa corporal e consumo de oxigênio de pico pré-transplante, a frequência de reabilitação cardíaca ≥ 23 sessões de exercícios é preditiva de menor risco de eventos cardíacos adversos maiores, especialmente na modalidade de pacientes pós transplante.¹¹ 

Considerações sobre esses exercícios são importantes. Assim como em qualquer situação na qual o paciente seja submetido a esternotomia, um cuidado especial em relação a não realizar exercícios que sobrecarregam a musculatura torácica e levem à tração do esterno deve ser salientado, principalmente nos primeiros 90 dias após o procedimento cirúrgico. Além disso, as sessões devem sempre iniciar com um período de aquecimento, assim como encerrar com um desaquecimento controlado, a fim de reservar um período para ajuste da frequência cardíaca e pressão arterial, alteradas pela denervação do coração especialmente no início do programa. O exercício aeróbico pode ser realizado em forma de caminhada ou ciclismo, tanto utilizando recursos como esteiras e/ou bicicletas ergométricas, quanto ao ar livre. Recomenda-se frequência semanal de três a cinco sessões, com duração de 20 a 40 minutos. A frequência e duração das sessões são ajustadas conforme condições prévias do paciente e devem progredir ao longo do treinamento. O controle da intensidade é fundamental e, devido ao maior número de evidências, recomenda-se uma percepção de esforço referida entre 11 e 13 na Escala de Borg.³ O treinamento intervalado pode ser adotado com objetivo de variação na forma do treino e ganho funcional potencialmente maior e os exercícios resistidos têm papel fundamental, principalmente na fase inicial e valendo-se apenas do peso corporal.⁷

Imagem 3: Escala de Percepção Subjetiva de Esforço (Escala de Borg)¹²

Portanto, o efeito benéfico do treinamento físico em indivíduos após transplante cardíaco é inequívoco. Além disso, o exercício aeróbico é a parte principal das sessões de treinamento, devendo ser complementado pelos resistidos e de flexibilidade, dentro de um programa periódico e individualizado.¹³ Tudo isso requer muita perseverança e resiliência do transplantado, mas torna a ascensão pela “escadaria de obstáculos” mais satisfatória.

REFERÊNCIAS

1. Registro Brasileiro de Transplantes. Dimensionamento dos Transplantes no Brasil e em cada estado [internet]. 2020. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://site.abto.org.br/publicacao/xxvi-no-4-anual/

2. A Yehya et al. Challenges and the innovations in the care of advanced heart failure patients during COVID-19 [internet]. 2021. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33432419/

3. Foroutan F et al. Predictors of 1-year mortality in heart transplant recipients: a systematic review and meta-analysis [internet]. 2018. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28855271/

4. Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretriz Brasileira de Reabilitação Cardiovascular [internet]. 2020. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: http://publicacoes.cardiol.br/portal/abc/portugues/2020/v11405/pdf/11405022.pdf

5. Instituto do Coração. Indicações de Reabilitação Cardíaca [internet]. 2017. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://www.icor.com.br/reabilitacao/reabilitacao-2/

6. Sociedade Brasileira de Cardiologia. I Consenso Nacional de Reabilitação Cardiovascular [internet]. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: http://www.medicinaintensiva.com.br/cardioreabilitacao.htm#Reabilita%C3%A7%C3%A3o%20Cardiovascular

7. Perrier-melo RJ et al. High-Intensity Interval Training in Heart Transplant Recipients: A Systematic Review with Meta-Analysis [internet]. 2018. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0066-782X2018000200188&script=sci_arttext&tlng=pt

8. Serafim C. Efeitos da Reabilitação Cardíaca após Transplante de Coração- Uma Revisão [internet]. 2017. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://bdigital.ufp.pt/bitstream/10284/6246/1/PG_28057.pdf

9. Manual MSD. Insuficiência cardíaca [internet]. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt-br/profissional/doen%C3%A7as-cardiovasculares/insufici%C3%AAncia-card%C3%ADaca/insufici%C3%AAncia-card%C3%ADaca-ic

10. Feitosa G. Reabilitação Cardíaca [internet]. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: http://sociedades.cardiol.br/nn/revista/pdf/revista_v3n3/02-revisao-reabilitacao.pdf

11. Uithoven Ke et al. The Role of Cardiac Rehabilitation in Reducing Major Adverse Cardiac Events in Heart Transplant Patients [internet]. 2020. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31981697/

12. Mueller D, Kneubuehler PA. Aplicação e análise dos efeitos de sessões de exercício físico aeróbico e de resistência aplicada na academia ao ar livre no controle da hipertensão arterial [internet]. 2016. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: http://www.rbpfex.com.br/index.php/rbpfex/article/view/1048

13. Machado AS et al. Effect of cardiopulmonary rehabilitation after heart transplantation – literature review [internet]. 2020. [Acesso em: 25 mar. 2021]. Disponível em: https://www.brazilianjournals.com/index.php/BRJD/article/view/22076

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